quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

UM AZAR DO KRALJ


Venham daí as derrotas morais, mister

Fernando Santos juntou-se a Ronaldo nas distinções planetárias: já tínhamos o melhor futebolista do mundo, agora a IFFHS e a Globe Soccer dizem (e dizem bem) que temos o melhor selecionador do mundo - ele mesmo, Dom Fernando. E como apreciamos a boa disposição, pedimos ao Azar do Kralj que nos escrevesse um ensaio sobre o homem que acreditou primeiro que nós todos naquela conquista impossível - o Euro, o nosso Euro
O líder mais consensual da nossa história recente não ganhou eleições, não apresentou uma ideia bilionária no Web Summit, nunca vendeu milhares de livros a tentar tornar-nos melhores seres humanos, e até terá dito aos jornalistas que não percebeu muito bem aquilo que aconteceu. Nem nós. Mas a verdade é que a sua carreira foi hoje coroada com o prémio de melhor seleccionador do mundo, conforme ranking da IFFHS, uma instituição meio opaca dedicada às estatísticas no futebol, da qual nos lembramos sempre que há alguma coisa boa para dizer. São poucas, e desta vez não é caso para menos.
Fernando Santos terá encontrado o princípio da cura para um país cuja sala de troféus se encontra recheada de vitórias morais e gajos que, se estivessem lá, punham a jogar fulano ou até convocado sicrano. Hoje o homem até podia voltar a convocar Makukula que nós diríamos: “Calma, se ele o convocou é porque viu qualquer coisa, deixem o homem trabalhar”.
Convenhamos: o mister lançou as bases para qualquer coisa que não sabemos bem qual é, nem vale a pena achar que é algo mais. A fasquia é hoje demasiado elevada e sob pressão, geralmente, não conseguimos. Mas há muito que, neste mundo entretanto globalizado, não tínhamos uma história para ostentar nas conversas com amigos estrangeiros, em especial franceses - a sua liderança deu um bigode a uma selecção arrogante, bigode esse apenas comparável em elegância, comicidade e emoção ao que ostentou num célebre cromo de caderneta dos anos 90, quando era treinador do Estrela da Amadora, um estranho acontecimento futebolístico da década 90 situado nos arrabaldes de Lisboa.
Reparem na beleza épica da coisa. Um cidadão português, ex-seleccionador grego, país do qual só guardamos boas memórias se entretanto tivermos passado lá férias, disputa a final de uma competição vista pelo mundo inteiro. Fá-lo frente ao país anfitrião. As casas de apostas dão-no como certamente derrotado. Pior, o jogo começa e este cidadão português vê-se privado do seu melhor jogador. Mas, como ele mesmo nos diz, um homem com fé não tem medo, e qualquer cepticismo ateu ruiu ao fim de 120 minutos em que finalmente compreendemos isto tudo: passámos anos a viver abaixo das possibilidades, futebolisticamente falando, e devemos, também como o mister confessou a Daniel Oliveira no programa Alta Definição, sentir fascínio perante a complexidade das coisas.
Uma coisa em forma de assim, uma coisa em forma de e-foi-o-Éder-que-os-lixou, uma coisa complexa em forma de taça. em forma de catarse. em forma de orgasmo colectivo. em forma de bebedeira inesquecível de sorrisos, alegria e versos de um hino literariamente caduco, cantados a plenos pulmões, enquanto o fígado não dá de si. Um hino que muitos de nós terão berrado pela primeira vez. Lembrem-se quando foi a última vez que cantaram o hino do princípio ao fim.
Nunca, quase ninguém sabe os versos daquilo. Lembrem-se quando foi a última vez que berraram o hino. Nunca, eu sei. Lembrem-se quando foi a última vez que viram alguém berrar o nosso hino. Sim, foi aquela selecção de râguebi que levou mil cento e quarenta e três a zero da Nova Zelândia. E mesmo derrotados enchemo-nos de orgulho daqueles rapazes. Embebedava-me já hoje outra vez.
A história fez-se e foi exactamente o oposto do que sempre achámos que seria - um bocadinho feia e desarrumada, mais suada do que talentosa, e podíamos tentar traçar aqui uma analogia com a perda da virgindade, mas não o faremos porque esta é uma publicação séria. Resumindo: o mister dos empates, das vitórias por meio a zero, do futebol que não entusiasma. E, fundamentalmente, o mister da estranha promessa em regressar apenas a 11 de Julho a 11 milhões de almas incrédulas perante tamanha confiança. E que, por tantos de nós, foi severamente escarnecido, este mister é hoje, e para sempre, professor, CEO, Cardeal, Honoris Causa e supremo chefe de estado nos nossos corações. Porquê? Porque nos deu uma vitória peremptoriamente nossa, contra a inflamação das cabeças dos adeptos das outras equipas.
É por isso tempo de celebrar este início de um novo capítulo na história nacional: o das derrotas morais. Jogamos mal? Está bem abelha. Baixa nota artística? Deixa-os pousar. Os franceses já sabem o que é bom para a tosse. Venham os próximos.

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