quarta-feira, 12 de julho de 2017

UM AZAR DO KRALJ


Não faças isso, Eder. Guarda a bola. Nunca marcaste daí. O que te leva a crer que vai acontecer hoje? (e aconteceu, por Um Azar do Kralj)
O filme de um dia histórico puxado atrás por um dos autores da página Um Azar do Kralj. Há um ano foi assim
Há um ano estava em casa com a minha mulher, os meus filhos e dois dos meus melhores amigos. O meu filho mais velho acabara de fazer dois anos e o mais novo acabara de pontapear o útero da mãe. Os amigos - o André e o Ivo - apareceram lá em casa com cerveja, amendoins e uma tímida esperança mascarada pela descontracção de quem sabia como estas coisas costumam acabar. Estavam lá pelo convívio, sem nada a perder. Se isso acontecesse, seria apenas mais um capítulo decidido pela nossa triste sina. Se ganhássemos, bom, ninguém lá em casa acreditava que ganhássemos. Ou melhor, ninguém o diria em voz alta, sob pena de ser crucificado no final. Foi assim que o jogo começou.
O Tomás ia disputando a minha atenção com um MacBook Air onde eu escrevia umas coisas que mais tarde seriam um texto para o Expresso. Aproximava-se a meia hora quando o Cristiano saiu lesionado.
Apontei meia dúzia de reflexões sobre o Payet, a maioria alusivas à mãe dele. A lesão do Cristiano foi um ataque fulminante, não porque o jogo acabasse ali mas porque, depois da sua saída, o resultado só poderia ser um. A esperança era tímida, mas entrara em campo. Agora, era tempo de desfrutar Agora, só nos restava lamentar e chamar nomes ao Platini ou a um desses gajos que culpamos quando as coisas correm mal. Paciência, pensei eu. Já fomos vice-campeões uma vez e sobrevivemos. É verdade que nesse dia saí de casa e fui chorar para um canto onde ninguém me visse, mas estou cá para contar a história. O que não nos mata torna-nos mais fortes. Obrigado, Charisteas.
O jogo prosseguiu vagarosamente, sem golos e sem grande domínio francês. Parecia até possível discutir o resultado. Depois de tantos empates irritantes, este até me sabia bem. A esperança ainda não morrera. A esperança ainda não morreu. Ainda estamos em jogo. Porra, era tão bom. Será que isto ainda pode ser nosso? Não digas disparates. Não pode. Isto vai acabar com o Abel Xavier a meter a mão na bola e uma equipa de ex-árbitros a analisarem o lance pela noite dentro. Despachem lá isso que eu depois desligo a tv. Que seja rápido e tão indolor quanto possível.
Pogba, Griezmann, Matuidi, Sissoko, Evra, Umtiti, Giroud. Cum caraças. Os franceses têm uma grande equipa e têm mais bola, mas a verdade é que não parecem inspirados. Aos poucos vou recuperando o apetite. A segunda parte já decorre quando me lembro que o André e o Ivo trouxeram frango assado. Sinto-me dividido. Há jogos em que tirar os olhos do campo para satisfazer outras necessidades pode ser visto como uma falta de respeito ou uma decisão crítica que nos roubará aquele momento de extrema felicidade pelo qual ansiamos semanalmente: um golo.
Um gajo até a urinar sente-se culpado, parcialmente responsável por qualquer desfecho negativo. Se acontecer o inverso e a nossa equipa marcar, passaremos as décadas seguintes a contar a história de como fomos o talismã que assegurou a vitória, pelo menos até alguém ter a coragem de nos dizer que já ouviu essa história oito vezes. É para isso que servem os amigos. Este texto é essencialmente sobre eles.
Final do tempo regulamentar. Os sacanas iam marcando. Ufa! Início do prolongamento. Parecia impossível, mas estamos a aguentar-nos. Mesmo quem não acreditava rói as unhas. Mesmo quem não acreditava dá por si a imaginar-se campeão europeu. Não sei como foi para vocês, mas eu imaginei-me encharcado em álcool no meio de uma multidão. Por enquanto, continuamos todos sentados em frente à televisão. Nunca um país gostou tanto de futebol, excepção feita ao meu filho, que continua a brincar com qualquer coisa e coloca-se à frente da televisão. Tomás, agora não, o pai está a tentar ver o jogo. É um ensinamento que repetirei até ele gostar tanto de futebol como eu. O pai está a tentar ver o jogo, mas já não vê nada à frente.
Termina a primeira parte do prolongamento. Tenho 35 anos de idade e um filho. Já passei por algumas coisas. Sinto que a vida não me preparou para uma final do euro decidida nos penalties. Livrem-me disso. Façam qualquer coisa, por favor.
Minuto 108. Remate do Guerreiro à trave. Já não consigo ver o jogo sentado. A bola continua a rolar. O Moutinho passa para o Éder, que faz uma rotação e ganha uma nesga, o suficiente para avançar no terreno. Decide rematar a 30 metros da baliza. Não faças isso, Éder. Guarda a bola. Procura apoio dos colegas. Nunca marcaste daí. O que te leva a crer que vai acontecer hoje?
E assim foi. Desatei aos berros, corri para a varanda e desatei a dizer asneiras como se tentasse fazer chegar uma mensagem a Paris. Nenhum adversário é tão verdadeiro quanto neste momento. O Bairro Azul nunca tinha ouvido tantos impropérios na sua história. Provavelmente nunca mais ouvirá. Abracei-me ao Ivo e ao André. Foi um dos maiores abraços que já lhes dei. Não sei quanto é que eles pesavam nesse dia, mas lembro-me que os levantei do chão e quase desmaiei a seguir. Abraçar um grande amigo depois de um golo é uma das melhores sensações do mundo. Vimos muitos jogos juntos e nunca me canso de celebrar com eles. Não é só o golo. É o facto de estarmos todos juntos ali, com saúde e boa disposição, num momento único, sem filtros nem contemplações. É o facto de juntos esquecermos as coisas menos boas e nos entregarmos a um momento como se nada mais interessasse. E o melhor de tudo é saber que, enquanto a saúde e a sorte nos permitirem, cá estaremos para fazer desse momento único um acontecimento repetível.
Quando caí em mim, o Tomás chorava desalmadamente, cheio de medo perante o comportamento selvagem do pai. A Maria pedia-me modos. Fiz o que pude para acalmar os ânimos, mas não dava para aguentar. O jogo está prestes a terminar. O sofá é uma invenção inútil. Estamos todos de pé, suspensos na incredulidade. Será possível? É mesmo. Somos campeões europeus. Minutos antes, fora ao frigorífico buscar uma garrafa de Murganheira. Ainda hoje vivo arrependido. Nada contra a pinga de produção nacional, bebe-se lindamente. Mas estive quase a comprar uma garrafa de Dom Pérignon, mas achei que seria embaraçoso encontrá-la fechada no frigorífico um dia após a final. Parte de mim pensou que a ocasião jamais justificaria um néctar tão caro. Enganei-me. Enganámo-nos todos quantos achámos que não era possível. Ainda bem.
Antes de rumar ao Marquês para terminar a noite como imaginara - podre de bêbedo, abraçado a amigos e desconhecidos no meio da multidão - recuperei as notas que estavam no MacBook e lá escrevi um texto em que garantia aos leitores do Expresso que o meu segundo filho se chamaria Ederzito. A grande verdade é que a mãe, o último reduto de sanidade lá em casa, recusou veementemente que a coisa passasse para além da piadola. Suspeito que as primeiras palavras ditas pelo Sebastião serão “Obrigado mãe”. Melhor ainda: nada disto nos impediu de casar doze dias depois. Pelo contrário. Celebrado o matrimónio, o Ivo e o André foram das primeiras pessoas que eu abracei. Não os levantei do chão porque parecia mal desmaiar no meu casamento, mas brindámos pela noite dentro aos dias mais felizes das nossas vidas. Está tudo ligado e assim continuará, até eu morrer.
Dizem que o tempo nos dá outra perspectiva das coisas, mas eu continuo a arrepiar-me quando recordo aquelas semanas. A vontade de ir à varanda gritar pleno de loucura e felicidade mantém-se intacta. E toda esta história, a do futebol, claro, mas também a dos grandes amigos ou a dos noivados, não teria sido exactamente igual sem um remate improvável do improvável Éder, sem todo o esforço daquela equipa dentro e fora de campo. Estou-lhes eternamente grato por serem parte da história da minha vida.

In Tribuna Expresso

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