quinta-feira, 24 de maio de 2018

DE ALCOCHETE PARA O MUNDO


"Situações como as que aconteceram são e serão inevitáveis se nada mudar, desde logo na cúpula dos clubes. Todos perdemos.

1. É-me difícil escrever sobre o futebol português nestes tempos de miséria moral e de indigência ética. Não porque seja um sonhador que julga que este reino do futebol seria sempre o reino das maravilhas. Não porque me ache no direito de ser juiz implacável de tudo o que observamos, tantas vezes com perplexidade. Mas porque os tempos de agora nos estão a aproximar dos antípodas do futebol que, menino e moço, aprendi a saborear, e no qual a busca vigorosa da vitória e a constatação sofredora da derrota eram simplesmente a expressão da ideia finalista de qualquer competição. Lembro-me da ideia da rivalidade aguerrida, mas contida dentro dos limites da urbanidade. Recordo-me da dialéctica quase ingénua na defesa dos nossos clubes, da ironia dos vencedores para os derrotadas e da réplica da desforra. O mundo do futebol era saudavelmente bipolar, quase inocentemente maniqueísta, partindo do princípio básico da alternância de quem ganha e perde. Na minha terra, havia uma barbearia que era um feudo do Benfica. A 50 metros havia outra que era portista. Entre as duas, o café de um leão indomável. E eu, depois de ler A Bola, deambulava entre barbeiros, ainda não cabeleireiros, e o café onde preenchia a minha caderneta de cromos de jogadores, e assistia, gostosamente, às discussões tão empenhadas quanto leais entre rivais. Não havia inimigos, mas adversários. Não havia ódio, mas disputa. Não havia a ditadura do dinheiro, mas a medida do amor à camisola. Não havia claques, mas apoiantes misturados numa festa. Não havia palavras e palavrosos, mas balizas e golos. Não havia poderes, mas deveres. Não havia violência, mas entusiasmo. Não se sabia quem era fulano, sicrano ou beltrano numa qualquer estrutura (palavra que não 'existia') de um clube. Vi o Benfica, como o Sporting e o Porto, em Coimbra, no Calhabé, onde o meu Pai me levava a ver estes jogos com a Académica, apesar de, na altura, o meu coração ser já benfiquista. Em 1956, assisti, com um familiar portista, ao jogo nas Antas em que o FCP se sagrou campeão vencendo por 3-0 a Académica, e assim impedindo o meu Benfica de o ser (2.º, com os mesmos pontos). Quando o Beira-Mar subiu à primeira divisão não perdia nenhum jogo dos 4 grandes (então ainda com o Belenenses) no agora velhinho e desprezado 'Mário Duarte'. O futebol era o jogo e tudo o resto se dissolvia nele. Éramos nós que buscávamos o futebol-delícia, não era o futebol-totalitário que agora nos aprisiona, todos os dias, todas as horas, como se nele estivesse a essência da vida.
Falo destas memórias não para dizer que sou saudosista. Sei que o mundo mudou vertiginosamente no e em redor do desporto. Mas o que mais me assusta, nos dias que correm, é a negação da exemplaridade de muita gente que nele e dele vive. Imagino uma criança assistindo a toda esta parafernália quase patológica num país suspenso a cada hora por qualquer facto ou parvoíce futebolística. Receio o modo como muitos jovens absorverão, na sua personalidade, esta fragmentação ética despudorada onde impera o lema de que para se atingir um fim (efémero) valem todos os meios lícitos ou ilícitos, legítimos ou ilegítimos, louváveis ou censuráveis. Na televisão (quase) tudo é bola, ou melhor é bola sem bola. Violência verbal a suscitar violência factual. Ódio indisfarçado a promover os piores valores relacionais para vidas futuras. Será que a ideia da convivência, o princípio da lealdade, a alegria da competição, a sinceridade da relação, a humildade da aceitação, a decência do comportamento, o direito do dever, a coerência da sensatez, a prudência dos limites, o orgulho de pertença são agora pontos enterrados no lamaçal do dinheiro, do ódio, da retaliação, da vaidade, do poder pelo poder, da manipulação comunicacional, da mentira?

2. Tudo já foi dito sobre os acontecimentos relacionados com o Sporting. Não vou aqui falar de tão degradante e dissolventes situações. Na terça-feira da semana passada, quando, em casa, assistia ao culminar da violência em Alcochete, senti-me envergonhado. Sei que, neste ambiente sórdido em que vivemos, há quem pense que quanto mais problemas houver num rival, tanto melhor para nós. Recuso-me a pensar assim e a educar a minha descendência nesse ambiente. Situações como as que aconteceram são e serão inevitáveis se nada mudar, desde logo na cúpula da responsabilidade dos clubes. Agora a questão já não é se podem ocorrer é, infelizmente, apenas saber quando e com que magnitude acontecem. Todos perdemos. Considero que não há ninguém mais benfiquista do que eu. Amo até ao tutano da alma o meu clube. Mas, racionalmente, procuro não perder o discernimento tantas vezes toldado pela química emocional. Fiquei desgastado com o que aconteceu em Alcochete e logo escrevi a dois bons amigos sportinguistas uma mensagem: 'Hoje sou sportinguista', em plena solidariedade que põe de lado as baias da rivalidade. No entanto, sei que haverá quem, lendo estas palavras, as ache 'blasfémias'. Se for o caso, paciência.
Neste contexto, não posso deixar de dizer quando me entristeceu a ausência de qualquer gesto dos rivais do SCP. Bem sei que já houve uma 'guerra de comunicados' entre o SLB e o FCP, a propósito da (grave) suspeita de corrupção para as bandas de Alvalade. Bom seria terem-na precedido por uma atitude de reprovação firme perante a horda de vândalos que espalhou o terror em Alcochete.

3. A quase totalidade dos sportinguistas e comentadores afectos vieram proclamar, ainda que com cambiantes, o seu inegociável afastamento do presidente do SCP. Bem-vindos à claridade do dia! Para muitos deles, pessoas experientes, inteligentes e com inabalável sportinguismo, custa perceber terem precisado de 5 anos e de um acto de vandalismo e cripto terrorismo para se darem conta do que era evidente! Cada qual com a sua razão, mas todos com a mesma desculpa. Há em tudo isto algo que me faz lembrar o súbito rompimento entre Sócrates e seus incondicionais amigos e colegas que precisaram de uma década ou mais para enxergar o que a 'ética do rosto' tão esplendorosamente evidenciava.

4. E eis que, de supetão, também todas cadeiras do poder se levantaram. A uma só voz, os órgãos de soberania. A um só 'comunicado' entidades públicas ligadas ao desporto, a Liga de futebol e outras organizações. O Primeiro-ministro anuncia uma nova Autoridade - mais uma! - para fazer o que as que existem fingem que fazem. É sempre assim no nosso país. As coisas só mexem (ou fingem mexer) nos dias do pós-acontecimentos graves e com repercussão pública. Mas, perante tudo o que de mal vem acontecendo há muito no futebol, o certo é que continuamos num quase 'dolce far niente'. Temos punições ridículas de uns míseros euros, púdicas admoestações ou a perda de uns pontinhos para prevaricadores, corruptores e corrompido e para actos de pura violência. Tudo numa boa. Um centro de árbitros é alvo de um quase sequestro com ameaças psicológicas e físicas e nada se passa. Temos agentes do desporto que sofreram actos de vandalismo nas suas casas e com as suas famílias e tudo se esquece. Temos descargas de tochas incendiárias e não há punição, a não ser os tais quase simpáticos euros de multinhas. Temos claques ditas organizadas e claques ditas irregulares a quem tudo é consentido num contexto de vandalismo, vícios sociais e de permuta de favores e interesses e assobia-se para o lado. Temos programas onde (vimos há dias) além da barbárie de insultos chegámos ao ponto de, em directo, haver ameaças físicas, com a hipócrita e pseudo-moralista indignação de quem dirige tais programinhas de sangue e escárnio, como se os escolhidos não o tivessem sido por terem tais características e os clubes nada fazerem (às vezes, bem pelo contrário) para afastar essas pessoas.
Banalizou-se a apologia da dívida e da antecipação de receitas futuras como forma de procrastinar os problemas, aceitou-se, sem consequências, que as SAD falidas ou pré-falidas vivam desrespeitando a lei que as levaria à dissolução. Enfim, podemos hoje constatar que o reino do futebol é habitado por muita gente não aconselhável e afasta as pessoas sérias, decentes e urbanas. No dia em que um clube, grande ou pequeno, seja despromovido por batota ou banido por causa da violência dos seus adeptos, talvez voltemos a enxergar alguma limpidez neste desporto. Haja coragem de banir péssimas práticas e de afastar pessoas indignas. Precisamos de algo em que acreditar, mesmo que por via dolorosa.

P.S. 1 - Lamentável a quase total desconsideração pelo D. Aves na maioria dos canais televisivos, antes da final da Taça. Parecia que o SCP ia jogar contra não sei quem...
P.S. 2 - Uma palavra de sincera solidariedade para Rui Patrício, grande profissional que tudo mereceria no seu clube."

Bagão Félix, in A Bola

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