Realizou-se, ontem, no Museu do Desporto, em Lisboa, o lançamento de um livro, Move-te por Valores, da autoria de Esmeralda Gonçalinho, Humberto Ricardo, André Carvalho, Amilcar Antunes e José Lima, onde se realçam, com mestria, “episódios inspiradores e reveladores” do que o Desporto tem de mais significativamente humano; e um opúsculo, de que sou autor, que se intitula Para um Desporto do Futuro. Deixo aí as palavras que proferi (ou queria proferir), nesta cerimónia…
Se durante cinco séculos vivemos sob o império da palavra impressa, ou seja, sob o signo do que Marshal McLuhan chamou a galáxia de Gutenberg, somos hoje governados e mais seremos no futuro pela galáxia Marconi que dá especial relevo aos meios audiovisuais, em desfavor da letra de forma. Por isso, são já muitos os que anunciam o ocaso, ou pelo menos a secundarização, do livro e da própria literatura. Entrámos assim em mais uma “idade de ouro da sofística”, onde o que se procura não é a Verdade mas as audiências, não é o sentido mas a reificação, não é a força anímica criadora de tempo e de história, mas o confuso e o difuso de quem, manipulado, perdeu a vontade de pensar.
O trabalho editorial do I.P.D.J., sob a orientação superior do Senhor Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Dr. João Paulo Rebelo, e preparado pela inteligência, pela diligência, pela constância no combate a antigas indiferenças e prevenções – o trabalho editorial do I.P.D.J., organizado e proposto pelo Dr. Augusto Baganha e pelo Dr. José Lima, bem merece uma inapagável dívida de gratidão do desporto português. Aos Drs. João Paulo Rebelo, Augusto Baganha e José Lima, não basta dizer “obrigado” e logo esquecê-los, porque fazer cultura, através do desporto, e entender o lugar da cultura no desporto só raros o têm feito, no nosso desporto. A presença, nesta cerimónia, do Dr. Miguel Real, um dos mais esclarecidos e fecundos escritores e filósofos portugueses do nosso tempo, que teve a bondade de prefaciar, a convite do Dr. José Lima, responsável pelo PNED/IPDJ, um despretensioso opúsculo da minha autoria, é bem o sinal de que na Secretaria de Estado, em que o Dr. João Paulo Rebelo superintende, não há Desporto sem Cultura, nem Cultura sem Desporto.
Senhor Dr. Miguel Real, o seu prefácio no meu livrinho Para um desporto do futuro significa, para além de uma tocante manifestação de amizade pelo mais humilde dos seus admiradores e amigos, que sou eu, que a cultura humanista e a cultura científica, ainda que surjam como duas energias diversas e independentes, encontram-se quase instintivamente associadas no patrocínio e amparo do mesmo desenvolvimento humano. Pela doutrina e pelo exemplo, Miguel Real é, superlativamente, um humanista. E o que é o Desporto, segundo o pensar desse mestre da sinopse que foi Pierre de Coubertin, senão um autêntico humanismo? Senhor Dr. Miguel Real, tenho a certeza que todos nos sentimos honrados, com a sua presença, aqui e agora. Ao Senhor Dr. José Ribeiro, diretor da Apuramento, a editora das publicações do I.P.D.J., quero agradecer a paciente compreensão pelas minhas incursões corretoras e reformuladoras, no texto inicial. Muito obrigado, Senhor Dr. José Ribeiro. No Livro I dos seus Ensaios, Montaigne escreveu: “Não se forma uma alma, nem um corpo, mas um homem; não deve estudar-se, separadamente, o corpo e a alma”.
Por isso, fazer desporto não é só competir fisicamente, mas competir fisicamente e… com valores de forte pendor antropológico! Não há ciência axiologicamente neutra, porque a sua “ultima ratio” é sempre política. Os problemas humanos não se resolvem, unicamente, dentro de uma racionalidade analítico-causal O ser humano não é só quantitativamente descritível, ou seja, mensurável. Há por aí metro, ou balança, que possam medir a bondade e a generosidade e o amor? Despontam em nós duas realidades que não podem reduzir-se uma à outra, numa palavra só: são irredutíveis. O biológico e o cultural têm a mesma original e enigmática fonte, mas não são a mesma coisa. Assim o pensam a rádio Antena 1, o Record e A Bola, ao nosso lado neste momento, nas pessoas ilustres dos seus diretores, e sempre enraizados na luta em defesa dos valores pedagógicos do Desporto.
Continuam vivas as palavras de Shakespeare, no Hamlet: “Há mais coisas, no céu e na terra, Horácio, para além da tua filosofia”. E assim o desporto é mais do que desporto. Há em nós, permanentemente, o desejo de um bem ausente. Por isso, esperamos. A mulher e o homem são seres em permanente espera. De quem?... Esta é a interrogação derradeira de cada um de nós. Não admitir a resposta a esta interrogação é roubar todo o sentido que a vida possa ter. Pelo simples facto de vivermos, uma pergunta nasce imparável do mais fundo do nosso ser: por quem esperamos quando não temos ninguém por quem esperar?... Há, com certeza, uma Razão, para além de todas as razões particulares. Para viver intensamente o Desporto, é preciso também um trabalho físico e um trabalho psicológico e um trabalho ético e uma grande crença onde tudo o que é Desporto encontre sentido. O conhecido lema Citius, Altius, Fortius (mais rápido, mais alto, mais forte), da autoria do Padre Henri Didon, amigo inseparável de Pierre de Coubertin, tinha, “in illo tempore”, um sinal de esforço, de transcendência física e espiritual.
No jornal Marca, de 20 de Setembro p.p., podia ler-se, a propósito do último Barcelona 6 – Eibar 1, “Leo Messi não conhece limites”. Mas, a que limites se refere o jornal? Eu, que vi jogar Di Stéfano, Puskas, Kubala, Pelé, Maradona, Garrincha, Didi, Cruyff, Eusébio, etc., etc., e que portanto admirei o seu talento futebolístico de raro quilate, não sei se a sua prática futebolística (e não tanto por culpa deles, reconheço) enriqueceu o património axiológico que subjaz à prática desportiva. O Desporto deve ajudar ao nascimento, no praticante, de um homem novo e, na sociedade, de uma sociedade nova. No Desporto, é preciso ser tão pedagógica e moralmente ambicioso como se é, ao nível da eficácia, no treino e na competição.
Há 50 anos menos um, a convite do Dr. Armando Rocha, diretor-geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, e amigo que não esqueço, por muitas e fundadas razões, fui nomeado responsável pelo Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto, que editava uma revista intitulada Ludens. Com a sua voz calma, mas sempre viva e tocante, disse-me ele: “Nunca deixe de escrever, em todos os números da Ludens. O desporto português necessita de rumos arejados e novos”. Com uma obra vasta, variada e sempre notável, como diretor-geral dos Desportos, Armando Rocha, em Outubro de 1968, considerava um serviço inestimável propor, para o desporto português, “rumos arejados e novos”. É o que eu pretendo fazer, quer nas minhas conversas fraternas com amigos (e alguns deles aqui estão nesta cerimónia), quer nas minhas palestras e nos meus escritos. Penso que da Escola e da Universidade não deverão sair tão-só especialistas de uma ciência ou de uma profissão, mas pessoas com uma educação, ou seja, com valores, que os forme e os informe durante a vida toda. Repito-me: uma Atividade Física, sem valores, não é desporto. O esplendor supremo e incorruptível do Desporto está na sua segunda natureza, resultante de um constante treino moral.
O Desporto é competição? Sem dúvida! Mas não só com outros desportistas, também connosco mesmos. A maturidade ou maioridade do desporto português não poderá alcançar-se com um dirigismo desportivo que sabe muito de finanças e não sabe nada de desporto. No caso específico do futebol, a alienação é tão visceral e consubstancial a uma certa imagem que certos clubes dão de si mesmos, que já se torna irrespirável a violência verbal de algumas pessoas. Oxalá a edição do livro Move-te por Valores e do opúsculo da minha autoria possam contribuir, integrados na política do PNED/IPDJ e com o inestimável apoio da rádio Antena 1, do Record e A Bola, a que alguns “agentes do futebol” abram os olhos, embora o seu profundo interesse em conservá-los fechados.
Manuel Sérgio, in a Bola
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