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sábado, 2 de dezembro de 2017

NINGUÉM É O CULPADO


"Ouvi segredar que está prestes a estrear uma nova ópera bufa: “A culpa é do Ninguém”.
Tendo o negócio galopante como universo paralelo, o enredo rondará a perda do talento, do controlo e o crescimento fortalecido da alienação.
“A inteligência em movimento” enfrentará, sem apoio da emoção, os gigantones de cabeça oca conhecidos pelo nome de “Os Bem Sentados”.
Em forma de jogo, a ópera envolverá um exercício inicial de estratégia comunicacional que dará origem ao desenvolvimento da ação: “scrabble” de ódio e mal dizer.
Depois, as palavras e o canto, a gritaria e os gestos amplos, afirmarão, com ar solene e sério, o não dizer, com falsa inocência, assim como o aprisionamento da humildade e a libertação da majestática hipocrisia com olhos em bico.
A liberdade criativa procurará superar a inveja e tentará descobrir os rumos perdidos, as lógicas submersas, os indícios do absurdo.
Dos estádios as atenções e preferências saltam para palcos sombrios de conceito aberto, tão em voga. Quanto mais se vislumbre menos se vê. Há sempre esconderijos e alçapões… para os mais distraídos.
A contradição, poderosa e com voz firme, lidera solistas com o oportunismo bacoco a marcar os ritmos dissonantes mas compreensíveis.
Por vezes, surgem frases soltas vindas de aléns: “não fui eu… sei quem foi mas não digo… quanto ganho com isso?…”
Espaço sem cobertura, o céu como limite ainda que rasteirinho, permite antever figurantes pequeninos que tentam imitar deuses grandes e horrendos: burlesco!
Após mais um trecho musical mais forte, empolgante, o cínico aparece numa barcaça ou canoa do Tejo (o nevoeiro não permite destrinçar) afogando certezas e pescando inutilidades.
Presidentes (há sempre presidentes em número elevado) e suas cortes de seguidores fervorosos porque dependentes, declamam, com improviso fingido, textos climáticos, de tendência hiper-realista citadina, muito centralista, impessoal e irrevogável. Também imperceptível. Por vezes fica a memória de um sotaque que se quer consolidar como praga ou vírus de gente fina.
Risco a evitar: não ser apanhado pelos caça palavras proibidas. Pode ser dramático…
O primeiro ato termina como começou, num eterno vácuo e, sem paragem, nova performance surge com uma componente metafísica ainda que lúdica: o jogo do arremesso (sejam pedras, calúnias, falsidades, piadas secas e molhadas, salgadinhos, mentiras e manipulações de imagens televisivas). 
Lançada a calúnia, em grupos isolados, segue-se o guião clandestino mas eficaz. Algumas vozes tentam defender a verdade com coragem mas ela fica maltratada quanto baste para não se meter noutra igual… para isso servem as substituições.
O ridículo, impaciente, entra como arte suprema, vaidozito, com orgulho no sucesso empresarial, potenciando um riso em coro crescente, inclusive em sociedades ditas secretas, seja lá o que isso for… é uma moda ou vício e pronto.
No fundo do palco, qual valquíria abandonada, multidões cerram olhos, tapam ouvidos e nem se mexem… quase amibas.
Cativos pela nova onda, que nunca chega a tsunami, disfarçam não viver, mas sempre limpinho, sem sair da dita normalidade de fingidores obrigatórios.
Radiante, a realidade, poética, dança com extrema leveza, em todos os sentidos e acaba envolta num repentino crepúsculo incoerente, para não dizer indecente.
Com jogos de luzes recriam-se paisagens virtuais, idílicas, inacessíveis, que chegam a permitir visualizações de paraísos, até fiscais mas não só.
A assistência é provocada para atirar insultos, grosserias virulentas quanto pior conseguirem e, ao sinal, do Presidente dos presidentes tudo se cala e o silêncio absoluto ensurdece. Respeitinho é muito lindo!
Rir ou sorrir obriga a detenção imediata e acompanhamento para antecâmara lateral, preenchida com espelhos deformadores e talvez alguns VARs.
Abatida, a realidade regressa sem triunfo e, inesperadamente, é atingida por lança certeira impulsionada pela corrupção.
Esta última personagem, até ao momento invisível, dissimulada, assume com frontalidade e imponência um domínio totalitário. Sobe ao palco, posiciona-se no centro, em estrado mais elevado, e submete todos os outros que são obrigados a ficarem prostrados no solo. Por vezes, um ligeiro toque na cabeça de alguns permite-lhes mudar para a posição de joelhos.
Simultaneamente, num descampado irregular, ao lado do teatro, dez crianças, quatro pedras e uma bola muito gasta, jogam uma espécie de entretenimento planetário intemporal, aparentemente sem regras, sem limites mas também sem caos.
Cada um dos grupos (dividem-se em dois grupos mas não se percebe a lógica das escolhas) e procura enviar essa bola por entre as pedras do lado contrário aonde estão as suas… alguém usou o termo balizas e, por incrível, assim ficou para sempre…
Movimentam-se sem parar, sem nexo evidente, tocam a bola uns para os outros e para a frente, fazem gestos nunca vistos nem imaginados e marcam golos, gritam eles, que são festejados com saltos e abraços… estranho, muito estranho, embora belo.
Neste jogo de crianças, a genialidade vence sempre, mesmo que a equipa perca. Chamam-lhe futebol (“pé de bola”) e procuram, por todos os meios possíveis, não o deixar contaminar pelo espectáculo vizinho, o tal da ópera bufa, onde todos são culpados.
Desejo uma brigada de descontaminação ambiental eficiente para que as crianças não percam o sonho e o conservem com a inocência de um tesouro precioso que temos de saber preservar. Quanto aos outros espectáculos, cada um faz as escolhas e as dependências com a culpa que quer.
“De época em época, o futebol é um “eterno retorno” que, nas palavras do filósofo, significa “o mais alto triunfo da vontade contra o tempo.”(apud Gustavo Pires)"

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