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domingo, 1 de abril de 2018

A RESSURREIÇÃO!...


A Ressurreição de Cristo, ou seja, a vitória do Filho de Deus sobre a morte e portanto o anúncio de uma nova era para a humanidade, deverá significar, para cada um de nós, ou mesmo ao nível mais amplo de uma transformação social, que o novo, o verdadeiramente novo, não acontece unicamente com reformas ou revoluções, mas com a Ressurreição, quero eu dizer, com a transcendência do nosso comodismo, do nosso escolasticismo, do nosso “interesseirismo”. É preciso criar, para além de uma democracia social, uma democracia política e, para além de uma democracia política, uma democracia cultural e, para além de uma democracia cultural, uma ética donde nasça um homem novo. Este trabalho de transformação, no âmbito da ética, parece o mais difícil de conseguir-se porque releva mais do qualitativo que do quantitativo, porque exige uma vontade de transformação radical, isto é, individual e social, sem necessidade do recurso ao “braço militar”. Em poucas palavras: à existência de estruturas e de instituições, relativas à democracia social e política e cultural (onde integro o desporto), deverá corresponder uma vontade de transcendência onde eu, matéria e espírito, indivíduo e pessoa, natureza e cultura, me sinta reorientado, por uma decisão profética, por um ato de fé, para uma experiência vivida do Absoluto. Não é de leis, é de ética, que a sociedade portuguesa, que o desporto português, com especial realce para o futebol, se encontram pavorosamente carecidos. Não há desporto real, mas apenas desporto formal, enquanto o desporto não for, verdadeiramente, uma ética em movimento. Num espaço onde os dirigentes olham uns para os outros com desconfiança indisfarçável, onde a ultima ratio parece, na boca desta gente, um gargantear desesperado de sabedorias anteriores ao paleolítico, onde as “cabeças pensantes” são precisamente as de pessoas que não sabem pensar, pergunta-se: que desporto é este? Que futebol é este?
Não contesto que atravessamos a passagem de uma cultura logocêntrica para uma cultura imagocêntrica ou, se assim quisermos, de uma cultura literária para uma tecnocultura eletrónica, onde predominam a televisão e o computador. Só que, unicamente com isto, assiste-se à desvalorização da teoria e da filosofia, promovendo-se, no seu lugar, as opiniões do mercado, o fascínio da publicidade, o debate entre retóricos, vazios de qualquer matriz lógico-demonstrativa. E assim o que mais importa não é a verdade e a justiça, a ciência e a consciência, mas a defesa de certas pessoas, de certos interesses. É possível a mesma ética para todos? O humanista francês, Michel de Montaigne (1533-1592) poderá escutar-se, a este respeito, nos seus Ensaios (Gallimard, Paris, 1953): “Aqui, vive-se de carne humana; ali, é um ato de piedade matar o próprio pai, em determinada idade; noutro lado, os pais decidem, com as crianças ainda no ventre da mãe, quais as que irão ser alimentadas e conservadas e as que irão ser abandonadas e mortas: noutro, os maridos mais velhos emprestam as suas mulheres aos jovens, para delas se servirem; e, noutro ainda, as mulheres são comuns; em determinado país, elas trazem, como sinal de honra, tantas belas borlas franjadas na orla dos seus vestidos, quantas as vezes que copularam com machos” (p. 14). Blaise Pascal (1623-1662) generaliza: “Não vemos nada de justo ou de injusto, que não mude de qualidade, quando se muda de clima” (Pensées, Gallimard, Paris, p. 230). Quanto a David Hume (1711-1776), ele acentua que as coisas (e as pessoas) têm tanto mais valor, para nós, quanto maior é a paixão que nos toma, ao desejá-las ou ao possuí-las. Portanto, a variabilidade das normas morais radica na diversidade das culturas, das religiões, das tradições, irredutíveis entre si e que moldaram a sensibilidade e a mundividência dos diversos grupos humanos.
Claude Lévi-Strauss sugere, no seu célebre relatório à UNESCO, “Race et Histoire”, que os “desvios diferenciais”, entre culturas, são uma riqueza a preservar, na construção de uma “civilização mundial”. Quando, na segunda metade do século XX, os povos colonizados entraram de lutar contra a descolonização, em favor da sua integral autodeterminação política, faziam do livro de Claude Lévi-Strauss o seu “vademecum”. Mas, existe, ou não, um critério universal que nos garanta que um sistema de valores e de normas é melhor, ou pior, do que os outros?”. Ou seja, é possível fazer juízos morais sobre juízos morais? A dificuldade de um critério meta-ético reside no facto de só com muita dificuldade poder ser aceite, pacificamente, por gente que vive de normas e valores diferentes e que, com base nesse critério, se consideram até moralmente inferiores. Como a História tantas vezes no-lo ensina, um critério meta-ético acaba por ser imposto, pela força. A Declaração Universal dos Direitos do Homem não está isenta de ambiguidades e de mal-entendidos, uma vez que as diferentes culturas não a observam, à luz dos mesmos princípios e valores. No entanto, embora os referidos mal-entendidos e ambiguidades, conseguiu-se um vasto e sensato acordo, quanto à interdição de práticas abomináveis, como a tortura, a escravatura, os genocídios, o abuso sexual de crianças, a corrupção, etc., etc. De facto, é possível um direito universal e universalizável? Julgo que sim! É sempre possível um debate ético numa sociedade pluralista, entre pessoas de “boa vontade”. É verdade que, numa sociedade de mercado, a moral parece ser uma só: a da altíssima competição e a do lucro máximo. Mesmo assim, numa democracia política, parece-me possível sempre um debate ético, estimulado pela vontade esclarecida dos contendores democratas…
Jesus Cristo aponta-nos um caminho: o da Ressurreição! Segundo Gilles Lipovetsky e Jean Serroy , na introdução ao livro A Cultura-Mundo: resposta a uma sociedade desorientada, (Edições 70, Lisboa, 2010): “Eis-nos numa cultura pós-revolucionária e, ao mesmo tempo, hipercapitalista. O que triunfa e se difunde, em todo o lado, é o imaginário da competição, a cultura do mercado, que redefinem os domínios da vida social e cultural”. E continuam estes autores: “O que caracteriza de imediato este universo é a hipertrofia da oferta mercantil, a superabundância de informações e de imagens, a pletora de marcas, a imensa variedade de produtos alimentares, de restaurantes, de festivais e de música, os quais se podem encontrar agora em todo o mundo, em cidades que oferecem as mesmas vitrinas comerciais” (pp. 20/21).Volto ao que já disse: vivemos uma “sociedade de mercado”, ou seja, vivemos uma sociedade sem alma. Precisamos de ressuscitar, quero eu dizer: de ter presente que, ressuscitando, o ser humano é mais do que um simples homem e portanto a transcendência, a superação é a sua principal dimensão e definição, o seu primeiro atributo. E transcendência do homem todo e não só da sua dimensão física e atlética. O postulado da primazia da ação e do trabalho, num desporto unidimensional, onde o que mais conta é o desejo insaciável de vitórias espetaculares, de mais campeonatos, de mais poder – gera o crescimento pelo crescimento, o progresso pelo progresso, ou seja, um infinito quantitativo, sem referências a outros valores que não sejam os de um economicismo selvagem e de um clubismo pateta. Entretanto, Cristo ressuscitou e, enquanto não ressuscitarmos com Ele, continuaremos num mundo onde podem não faltar os meios, mas escasseiam assustadoramente os fins. Cristo ressuscitou! Aleluia!
Manuel Sérgio, in a Bola

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