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terça-feira, 29 de maio de 2018

O FENÓMENO BRUNO


Durante muito tempo, Bruno de Carvalho foi apenas uma questão dos sportinguistas. Hoje já não é assim: o presidente do Sporting é um problema para o futebol português e, por força do mediatismo que lhe é concedido, tem um efeito de degradação do espaço público.
O sucesso de Bruno de Carvalho corresponde, aliás, a uma tendência que está longe de ser exclusiva do futebol e da sociedade portuguesa. No presidente do Sporting convergem todos os traços do perfil de liderança populista.
Se não há por aí um chapéu verde com o trumpiano slogan Make Sporting Great Again é por mero acaso. Toda a narrativa que alimenta Bruno de Carvalho radica, precisamente, na mesma nostalgia de um passado mitificado ("a maior potência desportiva") e reinventado (a reescrita da história com a atribuição de 22 títulos de campeão nacional, num exercício de revisionismo puro).
Mais, o fenómeno Bruno baseia o seu poder na promoção de uma dinâmica imparável de polarização, através da identificação de um outro que importa combater. Primeiro, os adversários externos (o Benfica e a comunicação social) e, com o passar do tempo, o próprio inimigo interno (os adeptos que não o veneram e, por fim, até os próprios jogadores). Neste processo, qualquer espaço de moderação foi destruído e reforçada a clivagem de que se alimenta a sua manutenção no poder. Restam, apenas, dois Sportings: o clube dos de baixo, a quem ele dá voz, e um outro, dos adeptos do "croquete".
Os mecanismos de reprodução do poder a que recorre são, eles próprios, de manual: o eu absoluto, sempre no centro de tudo; a guarda pretoriana que funciona como tropa avançada e com quem cultiva cumplicidades; e a vontade de falar por cima dos mecanismos de intermediação, promovendo uma relação direta com os seus. A este propósito, não é apenas a utilização das redes sociais que é significativa, é, também, a forma como os media tradicionais não se coíbem, eles próprios, de se demitirem da sua função primordial – a mediação –, concedendo a um presidente de um clube de futebol um espaço que não tem, nem nunca teve, paralelo na sociedade portuguesa.
Como acontece com Trump, o presidente do Sporting mobiliza também, de forma perversa, a ideia de que há um mecanismo de censura social nas sociedades liberais (que de forma simplista se usa chamar de ‘politicamente correto’) para ultrapassar todas as fronteiras da decência. De tal forma que quando pensamos que não é possível ir mais longe no insulto, escolhe precisamente os atributos mais positivos dos seus adversários para os criticar. Ser politicamente incorreto passou a ser, para muitos, motivo de orgulho, ao ponto de, como assistimos na semana passada, Bruno de Carvalho – que nem sequer cumpriu o serviço militar – não se inibir de dar lições de ética militar a alguém que esteve num violento teatro de guerra.
A questão, agora, já nem é saber se Bruno de Carvalho vai permanecer presidente do Sporting. A sua omnipresença na sociedade portuguesa e a forma eficaz como afronta as várias elites (económicas, políticas e mediáticas) servem, no essencial, de aviso: temos um contexto propício para que outros brunos de carvalho surjam. Da próxima vez, já não será circunscrito ao mundo do futebol.

Pedro Adão e Silva, in Record

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