"Ao chegar à página 34 da carta de rescisão de Rui Patrício deu-me a sensação de ter chegado ao fim de um tratado de psiquiatria (e não pelo Rui Patrício, claro). Talvez por isso me tenha saltado à ideia o Aksenty Ivánovitch de O Diário de um Louco do Gogol - que por lá escreveu (e foi do menos esquizofrénico que por lá escreveu):
- Ultimamente, vejo e oiço coisas que homem algum jamais viu e ouviu...
Afiador de penas em envergonhada pobreza, sonha com o pedestal que não lhe chega - e a única coisa que brilha em si é a opulência e delirante vertigem, atirando ao diário angústias, devaneios e descarrilhados pensamentos (assim):
- Tudo isto é ambição e provém do facto de haver debaixo da úvula uma vesícula e, dentro dela, um vermezinho do tamanho de um alfinete. Tudo isto é obra de um barbeiro que mora da Rua da Ervilha. Não lhe sei o nome, mas é sabido que ele, com uma parteira, procuram espalhar o maometismo por toda a parte...
As datas do diário mostram-lhe a mente estilhaçada: aparece o mês de Marturbo e dia 43 de Abril de 2000 (estando-se no século XVIII) - e é nesse dia 43 de Abril de 2000 que ele se vê Fernando VIII, o rei que faltava a Espanha. Levam-no para o manicómio e ele pensa que o levam para Espanha. Maltratam-no e ele acha que era o que não era:
- Eu, como rei, fiquei sozinho. E o chanceler, para meu espanto, golpeou-me com uma vara e enxotou-me para o meu quarto. É esta a grande força dos costumes tradicionais em Espanha!
Raspam-lhe a cabeça, sobre ela derramam-lhe, atrozes, baldes de águia fria - e, na última página, percebe que a sua Espanha é, afinal, o seu manicómio.
A cada dia que passa vejo o fantasma (ou o espírito) de Aksenty a pairar sobre o Sporting (e não só). Mas não: esse fantasma (ou esse espírito) não paira apenas sobre o Sporting (ou um homem só no Sporting) - e bem mais perturbador é o ver-se tanta gente sem perceber que a sua Espanha é o seu manicómio..."
António Simões, in A Bola
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