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terça-feira, 29 de janeiro de 2019

CHOVIA COMO SE O CÉU DOESSE


"25 de Janeiro nascia da Mafalala. A mãe queria uma menina. O Destino resolveu trazia um Mercúrio negro que voava com asas nos pés a caminho da eternidade.

Eusébio, Eusébio e mais Eusébio.
Janeiro é mês de Eusébio: digo e repito! Não será certamente o paciente leitor destas crónicas a fartar-se de Eusébio. Quando muito, fartar-se-á do cronista. Quanto a isso, as minhas sinceras desculpas.
Eusébio faria hoje anos: 25 de Janeiro.
A morte levou-o para a planície da eterne saudade onde florescem as rosas da memória...
Se Nelson Rodrigues dizia de Garrincha que foi o melhor jogador que o Brasil jamais viu depois de Pedro Álvares Cabral, então nós podemos dizer, descansadamente, que Eusébio foi o melhor jogador que Portugal jamais viu depois de D. Afonso Henriques.
É a minha opinião: por ela sou responsável. Odeio comparar jogadores de futebol. Sobretudo quando o tempo é tão diverso, que as contradições se tornam inevitáveis.
Eusébio não é comparável. Ele foi Portugal antes deste Portugal moderno, embora injusto. Ele foi para lá das fronteiras de um país tacanho, mazombo e triste e subiu até ao lugar mais alto do planeta ao qual os homens podem ambicionar. Ele foi para lá do mundo e estará ainda hoje a traçar órbitras arbitrárias nas quais os astros fingidos perdem a majestade, como dizia Miguel Torga, o poeta da montanha.
Às vezes, perguntaram-me: 'Como é que, depois de tantos anos, de tantas páginas de jornais, de dois livros dedicados a Eusébio, ainda consegues ter algo para escrever sobre ele?'
A resposta é simples: Eusébio escreve-se a si próprio!

Multiplicando letras...
Outras vezes reescrevo-me. Passo as letras do QWERT atrás das imagens.
Como a imagem de Eusébio depois de marcar o primeiro golo ao Brasil no Mundial de 1966.
Corre, de braço no ar.
Corre, Eusébio, corre! Passada felina de pantera. Divino negro.
A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a História está a passar por ele, pela sua agilidade elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vida-vidinha de que falava Alexandre O'Niell e que acabrunhava o país triste.
Corre, corre, corre, Eusébio, corre.
Estava apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixem-no ficar assim para sempre na parede lisa da vossa memória.
Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.
Eusébio reescreve-se a si próprio.
Lá em Lourenço Marques, d.ª Elisa Anissabani, a mãe de Eusébio, já tivera três rapazes. Queria uma menina. O dia 25 de Janeiro de 1942 não lhe fez a vontade. Nasceu-lhe outro rapaz. Chamou-se Eusébio. Da Silva Ferreira. O mundo saberia, a devido tempo, decorar-lhe o nome.
O mundo não tardou a confundi-lo com Portugal.
'Chego a convencer-me de que, enquanto os outros bebés aprenderam a andar, eu aprendi a chutar', diria Eusébio, dezanove anos depois, numa entrevista concedida a Carlos Miranda. Um ano depois de chegar a Lisboa e à Metrópole, como então se dizia, Eusébio já era o Eusébio, e tinha uma história completa para contar.
'Não me lembro de brinquedos, não me lembro de jogos ou de partidas', continuava. 'Lembro-se da bola. Sempre da bola A trapeira, se coisa melhor não se conseguia arranjar, lá nos coqueiros, em desafios sem fim, sem prazos de tempo nem balizas medidas. Jogar à bola, fosse como fosse, era tudo quanto desejávamos'.
A bola morreu com ele nesse mês de Janeiro no qual chovia como se o céu doesse.
Ou melhor: ele levou-a comigo, debaixo do braço, preparado para voltar a chutá-la no pedaço mais pequeno de relva que encontrasse vago. Acredito que continuarão juntos. Donos ambos da eternidade dos únicos!
25 de Janeiro: nascia Eusébio, na Mafalala.
Para mim, nunca morreu!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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