"Félix Bermudes foi companheiro do meu bisavô Acácio de Paiva na boémia lisboeta do seu tempo. Mas sobretudo companheiros de poesia e de teatro. Mas Félix gostava ainda de tudo o que era desporto.
O meu bisavô materno, Acácio de Paiva, foi uma figura! 'Uma figura! Uma figura!', exclamaria Otto Lara de Resende. Poeta, sobretudo, mas também jornalista, e dos bons!, n'O Século, no Diário de Notícias, na Ilustração Portuguesa.
Desculpem-me estar aqui a puxar a brasa da família, mas já me explico.
No que foi outrora o Lugar do Olival (no tempo em que havia lugares), agora Vila do Olival (vaidosamente), na Casa das Conchas, onde Acácio de Paiva viria a morrer em 1944, há penduradas na biblioteca umas fotografias que retratam bem a vida boémia lisboeta desse meu fascinante antepassado, um mordaz crítico de teatro e que colaborou, igualmente, na escrita de muitas peças. Pois bem. É agora que chego ao que vinha para aqui recordar. Em várias delas, das fotografias, claro, quem se apresenta solene, de bigode à Keiser, é Félix Bermudes. Esse mesmo, o Félix Bermudes.
Eram amigos, compinchas, frequentadores das tertúlias coloquiais e culturais da capital.
Ah! Félix Bermudes teve uma daquelas biografias infinitas que mais valem um livro do que uma croniqueta como esta que vos deixo, leitores pacientíssimos.
Nascido no Porto, no dia 4 de Julho de 1874, o futebol, para ele, seria sempre a coisa mais importante das coisas menos importantes. Mas não o Benfica. Tinha uma vida repleta. No desporto fez de tudo um pouco: atletismo, ténis, ciclismo, tiro, esgrima, hipismo, natação... E a bola, claro! Jogava a meio-campo.
Estava presente quando o Benfica nasceu, e disse sempre presente em todos os momentos complicados desses dias primordiais.
Poeta, dramaturgo, fundador daquela que começou por ser a Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses e é a agora a Sociedade Portuguesa de Autores, era dado a tiradas grandiloquentes: 'Sou benfiquista porque ajudei a construir, com uma parcela da minha própria alma, a catedral rubra da Alma do Benfica. Mesmo batido pelas vagas mais alterosas, o Benfica não soçobra!'
Escreveu hino do clube.
Avante p'lo Benfica
'Avante, avante p'lo Benfica
Que uma aura triunfante glorifica
E vós, ó rapazes, com fogo sagrado
Honrai agora os ases
Que nos honraram o passado!'
O Regime não gostou. Não queria cá avantes. Ainda por cima encarnados. Sim, encarnados, e não vermelhos. O Regime também não queria o vermelho. O hino ficou nas gavetas da memória. Pelo que sei, continua lá.
Poetas!
O meu bisavô Acácio de Paiva não era grande adepto do jogo inventado pelos ingleses (nem do desporto em geral), embora tenha deixado um interessantíssimo poema sobre um Portugal - Espanha.
Ligava-o a Félix Bermudes uma paixão fundamental pelo teatro e pela literatura.
A assinatura de Félix aparece, como autor ou colaborador, em mais de cem peças de teatro, de revista, de opereta. E em novelas e ensaios de filosofia política e espiritual. Talvez a sua maior obra tenha sido A Conquista do Eterno - O Homem Condenado a Ser Deus. Debruçou-se sobre a centalha divina que cada ser humano recebia do Criador. Entrou no caminho da teosofia. E, como era de esperar, esteve na base do nascimento da Sociedade Teosófica de Portugal.
Era um daqueles homens descontentes que investiam na agregação dos que sabiam serem predestinados.
Poeta sempre: Cinzas e Nada.
Mestre da comédia: O Conde Barão; O Amigo de Peniche; A Bicha de Rabiar; Arroz Doce; João Ratão; O Poço do Bispo, por exemplo. Exemplo, curtinho, senão precisava de páginas e páginas deste seu jornal.
Graças a ele, o futebol subiu ao palco do Politeama, juntamente com Ernesto Rodrigues e João Bastos, em 1925, com o Leão da Estrela. Em 1947, veio o filme de Arthur Duarte, com Sporting e FC Porto e sem Benfica.
Nesse tempo, o seu bisavô já partira para essa planície onde crescem as flores da eterna saudade.
Félix Redondo Adães Bermudes veio ao mundo na Rua de Santo Ildefonso, tirou o Curso Superior de Comércio, trabalhou em lanifícios, fez-se homem, meteu-se na política, foi fichado pela PIDE.
Simpatizo com essa faceta de Santo Ildefenso. Afinal, também eu nasci em Santo Ildefonso...
No tempo em que Félix Bermudes e Acácio de Paiva percorriam as madrugadas eléctricas dessa Lisboa malandra e grandeira, soltando para satisfação dos que os acompanhavam, tiradas poéticas de supetão. Félix traduziu If, de Rudyard Kipling. Pela primeira vez em Portugal houve quem tivesse a oportunidade de cair na realidade de uma obra perturbadora e comovente.
Desculpem-me se vos aborreço. Não sei se por ter um bisavô poeta, gosto de poesia e não sei viver sem ela.
E como, por vezes, não tenho mais nada para dar, gosto igualmente de oferecer poemas.
Este é um pedaço de Se. Foi também um pedaço da vida de Félix Bermudes.
Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...
Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...
Ah! Se... Pois, se puderem, leiam o resto.
E guardem todo o poema por dentro. Não como um. Se, mas como um grito de revolta contra este tempo que teima em matar os poetas."
Afonso de Melo, in O Benfica
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