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segunda-feira, 4 de março de 2019

"NO HABLO INGLÉS"


"Sem competição, o jogo é um passatempo. Sem beleza, pode ser visto por cegos artificiais: só lhes importa ouvir o resultado; um jogo, no limite, reduzido a dois números. O resultado final.

50%
1. O jogo de futebol e de outras modalidades, balança entre uma análise estatística que parece vinda da mais definitiva das matemáticas e os gestos de treinadores e atletas que entram com um pé direito bem direito, fazem a cruz de Cristo na testa e peito, ajoelham-se e levantam os olhos para o céu, parecendo por vezes agradecer ali, em directo, 50% aos treinos, 50% a Deus, a potência e a precisão do remate decisivo. A ciência do treino e a crença.

Tabuada
2. Sempre gostei de uma personagem de Hans Christian Andersen que a certa altura, diz: «Pediram-me para rezar, mas só me lembrava da tabuada».
De facto, aí está o jogo moderno: há quem, diante do pedido de uma oração ou, pelo menos, diante da mais simples crença ou fé, atire, ao rosto do outro, estatísticas num quadro de excel. E há depois aqueles outros que, quando lhes é pedido a tabuada, a racionalidade, a ciência - só se lembram de rezar.
Uns e outros são tontos e quase inimigos, claro. Mas por vezes têm de se entender.
O que é a crença, no fundo, qualquer que ela seja? É uma energia a mais, ou excesso de vontade que ali está para auxiliar tudo o que de humano se fez e treinou.
Se traduzirmos crença por autoconfiança os cépticos do 2x2=4 ficam tranquilos. Transforma a crença em conceitos da psicologia e tudo parecerá racional e quase exacto.

Estética e estatística
3. Estatística como forma de transformar a estética, e a beleza, numa contabilidade de armazém. Quantos remates e passes certos, errados e etc.?
Um passe feio é igual a um passe extraordinário, 1=1 na matemática dos cegos pela eficácia: 1 é 1, e nem mais nem menos. Mas claro que não.
É como se a pintura, por exemplo, se avaliasse pelas quantidades de pinceladas e não pelo desassossego e entusiasmo que colocam nos olhos do espectador. Fazer a estatística de um jogo é útil, mas é como fazer a estatística do Museu do Louvre contabilizando o número de quadros com as dimensões 50x30 e 1,5 metros x 70cm, ou o número de quadros em que a cor predominante é o azul ou o amarelo.
Um humano que diga:
- Que me importa a beleza? Que me importa a beleza de um jogo?
Merece passar o resto dos dias num qualquer inferno de fealdade e monotonia.
Sem competição, o jogo é um passatempo. Sem beleza, um jogo pode ser visto por cegos artificiais: só lhes importa ouvir o resultado; um jogo, no limite, reduzido a dois números. O resultado final.

A importância do aparelho auricular
4. No desporto, no meio de inúmeros psicólogos, uma ou outra vez ali estão os psiquiatras, tentando ajudar a resolver casos mais complicados. Falemos dos psiquiatras.
Respeito, claro este mui nobre trabalho, mas lembro-me por vezes da história de um actor americano que contou que, ao fim de doze anos de terapia, o seu silencioso psiquiatra finalmente abriu a boca e murmurou: «yo no hablo inglés»-
Para além do divertido, está aqui a essência. No fundo, um terapeuta é um bom escutador, mesmo que não entenda nada. Talvez se deva até garantir que quem nos vai ouvir não entenda a nossa língua para podermos falar sem qualquer inibição.
A terapia é, muitas vezes, uma forma de espelho sonoro: é a própria pessoa, com as suas palavras, que descobre o problema e o resolve. Quem não se cura é porque se escuta mal a si próprio."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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