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terça-feira, 11 de junho de 2019

CRUCIFIXO (E ETERNIDADE)


"Despedido, levaram-no a cursilho da Cristandade, a vida mudou-se-lhe; Atrás do pinheiro, Hagan apanhou-o

1. Por meados de 1971 fora dos juniores do Benfica para o Estoril e por lá jogando terminou (seis anos depois) o curso de engenharia electrotécnica e telecomunicações. Pouco era o que ganhava - casando-se, para comprar casa no Cacém teve de pedir à Caixa um empréstimo e outro a amiga da mãe (a mobília pagou-a a prestações). Ao nascer-lhe a filha, para ter dinheiro de que precisava, tornou-se o que não era: profissional - no arranque da época de 1979-1980, o Marítimo ofereceu-lhe três vezes mais do que o Estoril lhe dava e ele foi para o Funchal.

2. Jogava a lateral-esquerdo - e no Marítimo esteve um ano apenas. Numa viagem a Espanha, os pais foram assaltados num semáforo - partiram-lhes os vidros, a pedra atingiu a mãe na cabeça. A ela, caso criou-lhe situação de stress pós-traumático - e, ao ouvir do psiquiatra que o facto de ele estar longe o agravava, regressou ao Estoril.

3. Como o presidente do Estoril, Benito Garcia, era dono do Hotel Palácio, aceitou-lhe proposta numa condição: que lhe arranjasse emprego no hotel como engenheiro. Para se dedicar ao emprego, às vezes, nem sequer podia treinar com a equipa - e não deixava de treinar, mais tarde nem que tivesse de ser só um bocadinho.

4. De treinar não gostava muito: «De uma vez, fui ao campo, deu duas voltas ao campo - e parei. Pedi ao roupeiro que, se o treinador perguntasse lhe dissesse que eu já treinava. Quando ia a entrar no duche, apareceu, o Hagan: «O senhor não treina? Ouvindo-me dizer que sim, explodiu: Não, que eu estar no pinheiro e ver senhor dar duas voltas. Come on! Estive, por isso uma hora a subir e a descer escadas». (revelou-o em entrevista ao Sol).

5. Continuando como engenheiro no Hotel Palácio, ao deixar de ser jogador - outro destino agarrou: o que o atirou à eternidade. Em entrevista a A Bola, Rogério Azevedo perguntou-lhe: 10 de Janeiro de 1988 foi o seu primeiro jogo como treinador, lembra-se? A resposta saiu-lhe torcida: «Recordo-me mais do último jogo como jogador-treinador: empatámos com o FC Porto nas Antas, para a Taça, frente à equipa que tinha conquistado a Taça dos Campeões, a Taça Intercontinental e a Supertaça Europeia. Depois, no desempate, perdemos 1-2 na Amoreira, com dois golos de Rui Barros e falhámos penálti. O processo para começar a treinar foi muito rápido, nem me lembro do primeiro jogo...»

6. Esse seu primeiro jogo como treinador foi na Amoreira, contra o Barreirense, na 16.ª jornada do Nacional da II Divisão - e acabou 1-1: «Ser treinador foi coisa que me apareceu por acaso.Sugeri ao presidente do Estoril convidar para o cargo o António Fidalgo, meu afilhado de casamento, mas ele só aceitou na condição de eu o ajudar, como adjunto. Fez uma época fantástica, indo para o Salgueiros pediram-me no Estoril para ficar uns seis meses - e fiquei seis anos...»

7. 100 contos por mês foi o primeiro ordenado como treinador. «Que acabaram por ser reduzidos quase a zero, anos mais tarde, porque parte desse dinheiro era ajudas de custo e prémios e o Fisco considerou que fazia parte do meu salário e tive de pagar tudo com retroactivos. Só comecei a ganhar dinheiro no último ano no Estoril, com Filipe Soares Franco na presidência. Aí sim, o vencimento já se equivalia ao hotel, eram sete/oito mil contos por ano».

8. Levou o Estoril à I Divisão, por lá o manteve durante três anos - e, em Março de 1994, despediram-no (ponto Carlos Manuel no seu lugar): «Fui para a rua e pensei: acabou-se o futebol!» Vendo-o amargurado pela chicotada, casal amigo que o visitara em casa, desafiou-o a ir a um retiro do Movimento dos Cursilhos da Cristandade: «Fui para pôr a cabeça em ordem, pensei que era uma boa oportunidade e, olha: encontrei Cristo. Foi a maior sorte da minha vida: descobrir que, afinal, Cristo vive em nós».

9. O resto é o que se sabe. Passou para o Estrela da Amadora, de lá saltou para o FC Porto - e depois de ter sido, por lá, o Engenheiro do Penta, andou em brilho pela Grécia. Em menor brilho cruzou Alvalade e a Luz. Após nova passagem em fulgor pela Grécia, tornou-se seleccionador de Portugal. Ganhou o Euro 2016 (de crucifixo no bolso) e a Liga das Nações deu-lhe, em fervor ainda mais eternidade."

António Simões, in A Bola

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