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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

ÓDIO DE PERDIÇÃO


"Que segurança podem ter pessoas de bem e de paz e adeptos que levam a família e filhos menores à festa do desporto?

1. Sendo a terça-feira o dia da minha crónica semanal, sempre me calha o dia de Carnaval. Mas não é deste Carnaval que vou falar. Nestas alturas, sempre me lembro, de uma frase de Vergílio Ferreira: «Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se».
Camilo Castelo Branco escreveu o livro Amor de Perdição em 1861. Um tempo em que ainda não havia sido inventado o futebol que, acima de todos os outros desportos, se tornou o mais universal e o mais popular. De tal modo, que, ao longo da sua história de cerca de século e meio, gerou amores também de perdição, paixões assolapadas e relações identitárias absolutas.
Perdição quer dizer, segundo os dicionários, acto ou efeito de perder, desgraça, estrago, danação, ou, ainda, desregramento. Qualquer uma destas indicações semânticas tem o seu lugar no futebol.
O problema é quando a estes diferentes estados de espíritos se junta, explosivamente, o ódio. Daí o título desta crónica: ódio de perdição, que vai invadindo, crescente e impunemente, o ambiente em torno e por causa do futebol.

2. Antes de entrar no tema que escolhi para hoje - o chamado caso Marega - recordo aqui e agora duas extremadas e dramáticas situações que enegreceram o futebol. A primeira relacionada com um notável jogador austríaco Matthias Sindelar, conhecido como o Mozart do futebol, que morreu numa fria noite vienense de Janeiro de 1939. Foi encontrado morto na cama do seu quarto com a sua mulher Camila Castagnola, uma judia de origem italiana. Sindelar, que era filho de emigrantes checos judeus, negou-se a jogar pela selecção da Alemanha nazi que passara a integrar a Wunderteam (equipa maravilha, assim era apelidada a selecção austríaca), como consequência de a Áustria ter passado a ser a província alemã de Ostmark. Hitler não perdoou. Os nazis ofereceram uma recompensa pela sua captura. O cerco ao jogador apertou-se, até que um dia a polícia informou da sua morte. Assim terminou a vida e a brilhante carreira de um jogador que foi popularmente eleito o melhor atleta austríaco do século passado.
A segunda, bem mais recente, sobre Albert Ebossé, jogador de futebol camaronês, que morreu em 2014, com 24 anos. No seu último ano, na idade de todos os sonhos, emigrou para jogar na 1.ª divisão argelina. Na última partida da sua curta vida, até marcou o único golo da sua equipa (JS Kabilylie), o que não impediu a derrota por 1-2. Quando regressava aos balneários, foi barnaramente atingido por uma pedrada na cabeça. Adeptos - inconformados com a derrota - atiraram pedras, como se, do outro lado, pedras estivessem. Curioso é que por cá, esta brutal morte do jovem africano surgiu no rodapé noticioso. Mesmo no desportivo.
Eis dois exemplos brutais do lado perverso deste desporto. Por um lado, o totalitarismo mais cruel e desumano a impor as regras e a esmagar a liberdade mais singela. Por outro lado, a fúria totalitária de quem vê um simples jogo de futebol como se de uma guerra se tratasse.

3. Sobre o que aconteceu em Guimarães já quase tudo foi dito. No calor do momento, no sofá caseiro, na tertúlia do café, nas análises comentaristas, nos compulsivos comunicados de todas autoridades políticas, associativas e clubistas. Tudo... até que o assunto se perca na memória dissolvente e selectiva, trucidada por um qualquer novo epifenómeno, que agite a rotina e alimente o sobressalto vampiresco dos mais inflamados. Depois, virá a necrótica indiferença que tudo banaliza. Até a própria indiferença...
Houve de tudo. Hipocrisia em estado puro, lágrimas de crocodilos, prantos falsos de ateadores profissionais do ódio e da violência verbal, panegíricos compungidos em programas que, todas as semanas, nos dão sangue e ajudam os mais jovens e os mais incautos a transformar rivalidades sadias em insanidades rivais, tiradas políticas e partidárias majestáticas de quem quer ser o primeiro a chegar. Tudo servido em regime de pot-pourri durante horas a fio e páginas sobre páginas.
Houve de todos. Dirigentes com défice de exemplaridade, que não sabem ser homens no fracasso, nem senhores no sucesso. Políticos mais preocupados com consequências sobre a candidatura ibérica ao Mundial-2030 do que com o caso em si. Autoridades disciplinares que abdicaram de ser parte da solução, para serem parte do problema, sobretudo pela omissão, pela ilusória arte da procrastinação, ou, ainda, pelo discurso redondo, inútil e politicamente correcto. Claques em regime de seita que vomitam, quase impunemente, chamas de apelo às mais torpes acções. Certos treinadores e homens de banco incendiários que tudo perdoam na sua casa e tudo criticam na casa dos outros. Árbitros impreparados, enviesados, atemorizados que adoram ser os protagonistas de qualquer jogatana. Auto-regulação entre os clubes em regime de pseudo auto-defesa, com a ilusão de míseras multas face à violência endémica, mas que nada punem e nada dissuadem ou previnem. Órgãos disciplinares que vêm satisfazendo eloquentemente a ideia de que justiça tardia já não é verdadeira justiça (como se compreende, por exemplo, que jogos de há um ano ou largos meses sejam tão tardiamente objecto de punições, por sua vez sempre recorríveis, até que tudo fique nas calendas?).
No meio de todos, os menos culpados são os jogadores.

4. O que é que, de facto, aconteceu em Guimarães de verdadeiramente diferente em comparação com tantas e recorrentes atitudes ignomoniosas nos estádios (ou mesmo fora deles)? Apenas a saída determinada, respeitável, compreensível e corajosa do jogador Marega, depois dos insultos de que foi alvo. Não tivesse ele saído e tudo teria sido visto como normal, sem ser notícia e sem a repulsa lacrimejante de meio-mundo.
Marega foi inusitado sobretudo depois de ter marcado ao seu anterior clube (embora ele também tenha sido provocatório, pormenor que foi quase omitido). Situação infelizmente comum em momentos idênticos, em qualquer estádio, com tantos atletas que foram para um clube rival. Para não citar muitos casos que aconteceram, imagino o que diria a horda de adeptos mais inflamados e malcriados, se visse Hulk no Benfica a marcar um golo no Dragão, Òscar Cardozo no FC Porto a dar a vitória à sua nova equipa, na Luz, Bruno Fernandes no Benfica a facturar em Alvalade, Marega de volta ao Guimarães a marcar no Dragão, etc., etc.. E o que diriam jornais, televisões, comentadores, autoridades nestes casos hipotéticos, iguais a tantos outros? Eu respondo: nada. Quanto muito diriam que foi uma anormalidade dentro da normalidade.
Então o que é que houve em Guimarães que suscitou uma onda generalizada de repulsa? Eu respondo: o meio e a forma dos insultos, não a sua causa. E aqui sim, o meio constituiu uma ignóbil expressão racista que, infelizmente, já tem acontecido com outros jogadores e não deve, em caso algum, ser tolerada. E, repito, como tal, Marega fez bem em sair. Para simular macacos, já bastam aqueles (caucasianos) que até apreciam que assim lhes chamem.
Aliás, no jogo Vitória - Porto, uma parte significativa dos titulares e suplentes até era de origem africana. E não ignoremos que no nosso país muitos ídolos vieram das antigas colónias e são considerados, justamente, ícones da nossa história desportiva, encimados pelo rei Eusébio, o pantera negra (será que ainda posso dizer «pantera negra»?).

5. Diante de tantos problemas que se tendem a agravar, o que fazem o ministro e o secretário de Estado que andam sempre aos papéis, a disciplina federativa que finge que o é, ou quem, nos clubes, deveria dar o bom exemplo? Como é possível que se pactue com insultos e ofensas de todas a espécie e se dê corda a gabinetes comunicação de clubes que alimentam um mundo-cão de grosseira sem limites morais? E por que razão nada acontece - para além de umas multas de uns desprezíveis euros - com a exibição de lonas e tarjas de apelo à violência ou de insulto soez a autoridades e juízes, com cânticos a desejar mortes ou a caluniar um clube que nem sequer está a jogar, com jogadores que escolhem celebrar conquistas desportivas com ordinarices sobre clube rivais? O que será mais preciso para se criarem plenas condições para identificar e punir boçais que dão cabo do futebol e dos seus clubes? Que segurança podem ter pessoas de bem e de paz e adeptos que levam a família e filhos menores à festa do desporto?
E quantas vezes num só jogo se insultam jogadores e árbitros com todos os impropérios possíveis, começando pelo que mais fere a dignidade de cada qual (filho da...)? Será que aqui temos de nos conformar com um acórdão recente de um Tribunal da Relação, que consagrou, em modo de jurisprudência, o mundo do futebol como uma realidade à parte, que se pode resumir neste impensável raciocínio de que «um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral e contra as regras de ética desportiva é de alguma forma tolerado nos bastidores da cena futebolística», ou seja, uma ilha onde tudo é permitido, mesmo o que é proibido?
Em suma: ódio de perdição com inacção de rendição. Até quando?"

Bagão Félix, in A Bola

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