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terça-feira, 10 de março de 2020

VOANDO À CHUVA, PELO LADO DIREITO DO DESTINO


"Primeira goleada do Benfica nas taças europeias (Taça Latina incluída, claro está!) foi frente ao campeão húngaro, o Újpest Dózsa, em Novembro de 1960. José Augusto fez uma exibição esplendorosa sob bátegas de chuva

Era Lisboa e chovia, como diria Dário Moreira de Castro Alves. Era Lisboa, domingo, três horas da tarde. Dia 6 de Novembro de 1960. Os campeões húngaros tinham a fama do futebol fascinante do seu país fascinante. Újpest, clube antigo de Budapeste, fundado em 1885. Újpest Dózsa, por causa de uma das personagens que a História, assim em maiúsculas, não devia deixar esquecer. Gyorgy Dózsa, fidalgo da Transilvânia, herói dos campos de batalha no século XV, líder de uma revolta de camponeses contra a tirania dos senhores das terras, soldado da fortuna.
Chegaram, por isso, a Lisboa, uns húngaros de peito inchado de orgulho. Com motivos para isso. Vencedores por duas vezes da Copa Mitropa, uma taça dos campeões da Europa central, juntando os maiores da Hungria, da Áustria, da Itália, da Alemanha e da Checoslováquia, em 1929 e 1939, acabados de eliminar na ronda inicial os jugoslavos do Estrela Vermelha de Belgrado de forma claríssima, 2-1 fora e 3-0 em casa, não deixando dúvidas em relação a qual das duas equipas das margens do Danúbio era melhor.
Era Lisboa e chovia na primeira mão dos quartos-de-final da Taça dos Campeões.
Ah! Como o Benfica começava a encantar a Europa.
Nesta altura, em que os adeptos encarnados lamentam a incapacidade dos seus rapazes de hoje serem capazes de serem admirados para já da fronteira do Caia, recordo a primeira grande goleada europeia da águia.




Imparável José Augusto
Ainda não havia Eusébio. Havia um dos grandes injustiçados do futebol português. Santana. Jogador impressionante de técnica e personalidade. Juntava-se a José Augusto, Coluna, José Águas e Cavém na frente de ataque. Depois veio Eusébio, e foi Santana o sacrificado. Sem a lei das substituições em vigor, Santana foi sendo esquecido, logo ele que não merecia o olvido.
O Újpest tinha um guarda-redes de renome: Torok. E gente como Gorócs, Szuzka, Pataky e Bencsic. Ora, se os portugueses esqueceram Santana, como lembrarem-se destes nomes capazes de provocarem cãibras na língua?
José Augusto era um ponta-direita absolutamente impressionante. Meu querido amigo Zé! De repente voou pelas costas do defesa que o marcava e centrou para uma cabeçada violenta de Dominicano Cavém, o moço de Vila Real de Santo António. Golo! Golo lindo!
O povo, à chuva, vibrava.
Um-a-zero: logo de entrada. Cinco minutos depois, José Augusto voltou a fazer gato-sapato do pobre Dorsanyi, foi à linha de fundo, meteu a bola entre o ponta-de-lança e o guarda-redes, Torok, que era grandalhão, parecia que queria apanhar uma galinha pelo rabo, José Águas fino como um alho a empurrar ligeirinho para o fundo da baliza.
De onde se esperavam dificuldades infindas, vinham facilidades inesperadas.
As papoilas saltitantes que o velho Piçarra cantou estavam possessas. Papoilas assassinas, isso, sim, que não abrandavam o ritmo louco com que se atiravam para cima de uns pobres húngaros esvaziados como um cartucho de papel pardo.
Santana tinha uns pés maravilhosos. Uma técnica requintada uma capacidade de passe acurada, certeira. Coloca José Augusto na cara de Torok, e o Zé do Barreiro estava endiabrado. 3-0. 11 minutos!? Mas onde é que isto vai parar?, perguntavam-se os adeptos maravilhados.
Em cima do quarto hora, José Augusto voltou a meter-se pelo meio de dois contrários para devolver a Santana a simpatia do golo. 4-0!
O Újpest era um navio-fantasma à mercê das ondas alterosas de um mar vermelho. Procurou responder, mas não tardou a ver José Águas marcar o quinto.
Queria lá o povo saber se chovia em Lisboa.
Chovia água, choviam golos. Uma alegria enorme à mistura com orgulho.
Eis-nos no segundo tempo. Os húngaros arrumaram-se para evitar um resultado infernal, abracadabrante. Davam a eliminatória como perdida, ainda com 45+90 minutos por jogar, mas tinham um estatuto a conservar.
A ânsia benfiquista também acalmou. Os acontecimentos equilibraram-se, Costa Pereira foi obrigado a defesas com mais ou menos dificuldade, sobretudo por via da alacridade de Gorócs. Só mesmo ele poderia encontrar o caminho para o golo. Marcou-o 24 minutos após o fim do intervalo.
O ânimo desse momento trouxe o Újpest para a frente. De um momento para o outro, a descrença desapareceu, e estavam de volta à luta pelo resultado e pela eliminatória. Oito minutos decorridos, e Pataky faz 2-5.
O Benfica relaxara na agressividade, permitira o ressuscitar da equipa de Dózsa, o cavaleiro das batalhas incessantes.
Os minutos escorriam como areia no estreitamento da ampulheta.
José Augusto outra vez. Lá na direita, furioso. Voava à chuva com asas impermeáveis. À beirinha do fim tomou a responsabilidade de resolver sozinho os problemas que lhe surgiram. Fez o golo 6.
Pela primeira vez, ao fim de doze jogos na Europa, Taça Latina incluída, como não podia deixar de ser, só os néscios se atrevem a ignorar as competições que antecederam a Taça dos Clubes Campeões Europeus, o Benfica assinava uma goleada gorda, impositiva. A derrota em Budapeste (1-2) foi apenas mais um passo no caminho para a final de Berna, na qual bateria o Barcelona (3-2). O seu nome fazia eco por todo o Velho Continente. Era um ditame do destino que todos os que envergarem a camisola com a águia no peito têm a obrigação de respeitar. Porque ninguém, mas ninguém, pode fugir ao seu destino! E o destino não se compadece com o medo..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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