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quinta-feira, 2 de abril de 2020

ERAM CINCO EM SOMBRA DA TARDE!


"Organizou-se para obter verbas para a construção do Estádio da Luz. A I Corrida de Touros Sport Lisboa e Benfica, no Campo Pequeno. A chuva não afastou o entusiasmo. Salvação Barreto, que estava na moda por ter pegado uma fera no filme Quo Vadis, em exibição em Lisboa, quis repetir a façanha e teve ordem de prisão.

Vítor Gonçalves gostava de touradas. Era um jogador de classe. Primeiro como avançado puro, depois recuando um pouco no campo, tornando-se um médio de personalidade rara.
A sua paixão maior era a bola. Depois vinha a arena.
Quando o Benfica cumpriu 25 anos, foi um dos entusiastas pela garraiada promovida na velha Praça de Algés. Nessa tarde, Vítor estava feliz como nunca.
Não sei se, como dizia Garcia Lorca eram 'las cinco em punto de la tarde'.
Sei que a garraiada foi comandada pelo tenente-coronel Ribeiro dos Reis. Foi uma estreia, sim. Mas algo para repetir-se.
Goste-se ou não se goste, a tradição do touro está aí, na alma portuguesa. O Benfica não poderia fugir a esse chamado. Como não podia fugir ao chamado do Lorca, porque tem entranhada na existência um mundo de poesia: 'Ay, qué terribles cinco de la tarde! Eram las cinco em sombra de la tarde! Las heridas quemaban como soles!'.
Cinco em sombra da tarde. Nenhum de nós consegue fugir ao apelo do poema. Mesmo que as feridas queimem como sóis...
No dia 26 de Outubro de 1952, os dirigentes do Benfica decidiram ir ainda mais além. Organizaram a I Corrida do Sport Lisboa e Benfica. A receita reverteu em favor da construção do Estádio da Luz. O assunto era para ser levado a sério. Não se tratava de qualquer chinfrineira. De tal ordem, que o Benfica - SC Braga para o campeonato nacional até foi antecipado. Leiam, leiam: 'Não sofre dúvidas: acontecimento e dos maiores, esta formidável corrida de toiros que se efectuou no Campo Pequeno para o fundo de construção do novo estádio e parque de jogos do Sport Lisboa e Benfica'.

Festa e cadeia
Era a última corrida da época. Sublinhava a partida para o México do matador Manuel dos Santos. Cavaleiros: Simão da Veiga, João Branco Núncio, José Rosa Rodrigues e Francisco Sepúlveda; espadas: Manuel dos Santos, António dos Santos, Joaquim Marques e Francisco Mendes; moços de forcados: Amadores de Lisboa, com Salvação Barreto como cabo. 'Cartel primoroso que só o Benfica conseguiu organizar neste final de época. Todos os aficionados estão de parabéns, como também estão todos os adeptos do grande e popular clube português, que, uma vez mais, percebeu como é amado pela população de Lisboa'.
Não importava sol ou sombra. Nem foi caso para isso, porque desatou a cair uma chuva miudinha, irritante, daquela a que o povo gosta de chamar de molha-tolos.
Francisco Sepúlveda montante o Gama com laivos de pertinácia, sempre de frente para a fera, sem medos, com alegria e sem demoras. Mereceu a ovação. Tremenda ovação.
Manuel dos Santos, em trânsito para Tijuana, houve-se com um novilho de estadão, bicho largo, ancho, com a valentia e o pundonor que a afición lhe reconhecia, exponde-se com a capa e a muleta, deixando o bicho aproximar-se, quase lhe tocando de raspão, para arquear as costas, fugindo-lhe aos cornos cortantes, adornando-se em molinetes, entrando a matar al encuentro. Os sócios do Benfica ergueram-se para a despedida. O México esperava por ele.
Os pormenores tiveram fascínio. Leiam, leiam: 'Nuno Salvador Barreto, que em Lisboa está a pegar um touro desembolado num filme que se exibe três vezes ao dia (era o Quo Vadis, recordam-se?), quis repetir o facto ao vivo, e o representante da Direcção-Geral dos Espectáculos levou o seu zelo ao excesso de requerer a sua imediata prisão, que deveria, pelo menos, ser retardada para o fim do espectáculo para não privar o público do que estava anunciado, as pegas, porque o seu grupo, privado do cabo, que é a cabeça, ficaria acéfalo se não se tivesse, naturalmente, retirado'.
Há sempre uns figurões que gostam de impor a sua autoridade, por mais bacoca que seja. Salvação Barreto foi posto em liberdade pouco depois, mas impedido de assistir ao jantar oferecido pela direcção do Benfica na Adega Mesquita.
Entrou Francisco Mendes, acenderam-se as luzes do Campo Pequeno, que a tarde ia longa. O touro estranhou e baralhou-se. Perseguiu, aqui e ali, a própria sombra e estragou e baralhou-se. Perseguiu, aqui e ali, a própria sombra e estragou o trabalho do toureiro. Depois, no seu jeito de bem muletear, garantiu os aplausos de uma gente alegre.
Bem a chuva estragaria a noite do Benfica.
'Todos os cavaleiros, toureiros e forcados amadores brindaram ao Sport Lisboa e Benfica, cujos adeptos devem ter ficado satisfeitos com a gente dos touros sempre pronta para tudo que contribua para as boas relações da família portuguesa'.
Os touros, esses recolheram aos curvos, vermelhos de feridas em fundo negro.
O povo continuou a festa, aqui e ali, um pouco por toda a parte. A tarde não tivera futebol, mas fora popular como poucas..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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