"Só ontem percebi a verdadeira magnitude do problema enfrentado pela indústria do futebol. Esqueçam o adiamento do Euro ou a suspensão da Champions League por tempo indeterminado. Descobri eu que Diego Armando Maradona, treinador do Gimnasia de la Plata, propôs a redução do seu salário para ajudar o clube.
Quando um dos melhores futebolistas de todos os tempos, e talvez o mais carismático, propõe reduzir o seu salário, eu percebo que a coisa tá preta, mas não como na canção do Chico Buarque, em que apesar de tudo a pobreza estrutural do brasileiro vai sendo atenuada com os prazeres opiáceos, um dos quais o futebol.
Não havendo futebol, sobra a cachaça, como diz a canção, um ou outro estupefaciante, e pouco mais. Sinceramente, espero que o dealer do Maradona seja sensível a esta nova realidade. É que estamos a falar de alguém que não devia sequer ser obrigado a lidar com um conceito tão absurdo como o dinheiro para viver a vida na sua máxima plenitude.
Maradona não foi o primeiro a anunciar uma revisão salarial em baixa. Antes dele tinha sido a equipa do Barcelona, que prometeu financiar os salários de outros colaboradores do clube. O plantel do Bayern de Munique seguira caminho idêntico. Instituições centenárias e altamente respeitáveis, cientes do vazio legal e moral, fizeram o que lhes competia e reverteram parte das somas pornográficas que lhes são pagas em favor da viabilidade financeira da organização que representam e dos seus demais colaboradores.
Achei bonito. Ficou bem a todos e ajuda muitos mais.
As respostas não se ficam nem devem ficar por aí. Agrada-me muitíssimo que o meu clube faça o que pode num momento como este para ajudar quem mais precisa. Tenho visto as doações, as palavras de apoio, os apelos para que fiquemos em casa, e os jogadores a distribuírem refeições. Sinto que tudo isso é absolutamente digno daquele que deve ser o papel social de uma instituição com a grandeza do Sport Lisboa e Benfica.
Só há um problema: acho que ainda não chega. E também sei que não depende exclusivamente de quem manda no clube. Mas estamos nisto há quase um mês e começo a ficar com comichão. Passo a explicar.
Eu não sou especialista em gestão nem coisa que o valha, mas apetece perguntar, do alto do meu pensamento crítico forjado algures entre o romantismo do adepto, um rudimentar saber contabilístico e uma concepção de moral relativamente sólida: por que raio é que os maiores clubes em Portugal, incluindo o Benfica, ainda não anunciaram reduções salariais?
Especialmente aqui, onde boa parte das agremiações da primeira liga vive acima das suas possibilidades?
Ainda que a piscina olímpica do clube esteja hoje cheia de notas de 50 euros, ninguém quererá que essa segurança financeira seja hipotecada. Hoje, a tal fortuna que o clube possui em caixa deve ser o seu “war chest”.
Ora, é possível que a minha opinião seguinte esteja ferida de algum populismo. Pode ser da quarentena. Talvez seja só uma saudade do futebol a dar de de si, ou talvez seja uma perplexidade minha perante a demora em reagir publicamente ao tema salarial.
Lamento o eventual abuso interpretativo acerca do contrato de trabalho celebrado com estes rapazes, mas eles não estão efectivamente a trabalhar. Não me podem pedir que considere normal que uma parte destes jogadores, remunerada pornograficamente no contexto da realidade portuguesa, esteja há 3 semanas fechados em casa a jogar FIFA20 ou a fazer stories no Instagram, e ainda assim justifique receber o mesmo salário.
Certo, a culpa não é dos jogadores. Mas, se não for por uma questão legal, que seja por uma questão moral. Isto não é exclusivamente sobre o Benfica, mas diz-lhe obviamente respeito.
Não tenho grandes razões para duvidar dos méritos da gestão financeira do clube. Talvez o clube consiga sobreviver a esta catástrofe sem rever as condições dos seus activos. Não sei é se queremos ter essa medalha na lapela.
Seria importante que isto deixasse poucas sequelas, e para isso será também fundamental que os jogadores saiam moralmente incólumes desta situação.
Muitos como eu não se esquecerão daquela que será a sua posição face a este tema. Gostava que o Benfica e os seus atletas de futebol profissional voltassem a ser exemplares. Enquanto não soubermos qual é a sua posição, permanece alguma inquietação.
Por outro lado, este tema dispensa visões umbiguistas. O que defendermos não deverá ser só sobre o nosso clube, mas sim sobre o que acontecerá às ligas num futuro muito próximo. Talvez agora, que parece ser uma questão de sobrevivência, os clubes se unam em prol do bem comum.
A resolução deste problema permitirá ao futebol português conservar alguma dignidade depois da pandemia. Sabendo-se das somas pornográficas - para a realidade portuguesa - que são auferidas por alguns futebolistas profissionais, dos desequilíbrios financeiros entre clubes muitas vezes próximos no topo da classificação, sabendo-se da quebra dramática nas receitas dos clubes agora e nos meses que se avizinham, e sabendo-se das dificuldades que, segundo o presidente do Sindicato de Jogadores, já são sentidas por alguns atletas, fica a dúvida sobre se alguém nos bastidores estará activamente a tentar criar alguma espécie de instrumento que permita apoiar clubes e atletas em dificuldades, desde que garantida elegibilidade comparável à de outras empresas, ou se existirá um impasse à espera de dias menos pandémicos.
Pela minha parte, digo-vos que preferia que as minhas quotas pagassem os salários de um funcionário do meu clube ou, por exemplo, de um fundo solidário comparticipado por sócios de todos os clubes que estejam em condições de o fazer. Pode parecer improvável, estapafúrdio, ou excesso de solidariedade, mas não duvidem: o futebol português vai precisar de uma valente operação coração."
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