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segunda-feira, 1 de junho de 2020

A IMPORTÂNCIA DE SER O MUNDO...


"Duas visitas do Benfica ao Municipal, no Redolho, em Águeda. Primeiro para o campeonato, para defrontar o Recreio, na maior enchente jamais vista naquele estádio, depois para jogar contra o Luso, da vizinha Mealhada, para a Taça de Portugal.

No tempo do meu bisavó Afonso dizia-se: Águeda é o mundo! E até certo ponto era verdade. Não sei se hoje em dia Águeda oferece muito ao País. Se calhar, não. Mas o País também não nos oferece muito ao País. Se calhar, não. Mas o País também não nos oferece grande coisa, e nós não deixamos, por isso, de gostar dele. Claro que também nós não acrescentamos muito ao País, mas aí já somos tratados em conformidade. E este nós é mesmo nós: ou seja, é a primeira pessoa do plural; não é majestático.
Conheço muita gente para quem Águeda continua a ser o mundo. Com ponto de exclamação, ou não, no final da frase, pouco importa. Diria mais... ou, melhor, vou pôr o Alberto Caeiro a dizer para mim: 'O mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo'.
Não há muita gente que saiba que o Vidal, da Aguada, levou leitões à rainha de Inglaterra. Já esteve em lugares da Terra onde as pessoas ficam em Aguadas, de Cima e de Baixo, quanto mais Oronhe ou Bolfiar, o Raivo ou Valdomingos. Já estive em lugares da Terra onde as pessoas não sabem ao certo o que é um leitão e não têm conhecimentos muito mais profundos sobre a própria rainha de Inglaterra.
Antigamente, em Águeda, o campo de futebol chamava-se Campo de S. Sebastião. Tinha a capela atrás de uma baliza e o campo de básquete atrás da outra. À volta tinha tapumes de madeira, e o Recreio disputou nele os jogos mais fantásticos da sua história, expecto um. Nestas coisas de jogos históricos, a memória tem uma importância fundamental: quanto menos a gente se lembra deles, mais históricos são. Não há jogos históricos sem imaginação e um ou outro pormenor impossível de confirmar que possam motivar discussões vitalicias. Não é segredo para ninguém: a memória é a maior inimiga da imaginação. Nenhum golo é tão bonito como aquele do qual não há quem se lembre, mas do qual toda a gente finge lembrar-se no momento em que alguém se decide descrevê-lo. A bola caindo na entrada da área, o Fanfas chutando de primeira, as redes da baliza do lado da capela abanando de alegria. E quando o discutem, tornar-no verdadeiro: isto é, mais histórico.

As visitas do Benfica
Na excepção dos jogos históricos do Campo de S. Sebastião, há o Recreio - Benfica já na beira-rio, no Redolho, junto às Lavadeiras e ao Fojo. Nessa tarde, foi tanta gente ao Municipal, que o público se esticou ás linhas laterais, e eram guardas-republicanos a cavalo que vigiavam os fiscais de linha. A malta gritava: 'Tira o cavalo da frente, que quero ver a bola'! E cavalo e cavaleiro num orgulho desmedido de bestas a fazerem de guardas fronteiriços sobre os traços de cal.
Dia 26 de Fevereiro de 1984. O Recreio tinha o Tibi na baliza e levou quatro golos. O público do Benfica lançava a velha pilhéria: 'Vai buscar, Tibi!' E o Tibi ia, que remédio. Nené marcou dois golos, o Diamantino, um, e o Paulo César que jogava na defesa aguedense, acertou com a bola na própria baliza. O golo do Recreio foi de César, um brasileiro elegante que seguiu para Setúbal.
Os meus amigos Jorginho e Nogueira estava em campo, defendendo a camisola cor de sangue seco dos Galos do Botaréu. Mas não chegava. Como não chegou para evitar a descida e terminar de vez com a presença de Águeda na I Divisão, que durou apenas essa época na qual o Benfica viria a ser campeão.
Estive lá e vi. O Benfica em Águeda.
Depois o Benfica voltou a Águeda, e eu vi outra vez. E outra vez em Fevereiro: dia 29. Desta vez para a Taça de Portugal, mas sem Recreio. O adversário foi o Luso. Não o Luso do Barreiro, que não faria sentido andarem tanto as duas equipas para disputar uma eliminatória. Um Luso bairrradino, o Clube Desportivo do Luso, ali vizinho da Mealhada, que, não tendo campo de jeito para receber adversário de tal tamanho, recorreu aos préstimos do Recreio. Nesse tempo, o Municipal já não era pelado, tinha uma relva bem arranjada, à medida da habilidade dos craques. Curiosamente, e talvez porque não havia público até às laterais, a ser empurrado para fora das quatro linhas por guarda-republicanos, a relva não deu ao jogo a qualidade do anterior. Diamantino fez um golo, aos 73 minutos, e a contagem ficou-se por aí. Faltou-lhe a alma, ao encontro, quero dizer. A alma das gentes de Águeda que continuam a acreditar que Águeda é o mundo..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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