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terça-feira, 30 de junho de 2020

CAPAS NEGRAS DESFRALDADAS AO SOL DE DEZEMBRO...


"Guilherme Espírito Santo era um homem modesto e quis uma festa modesta no dia em que disse adeus ao futebol do Benfica. Modesta mas belíssima. E comovente. Os seus amigos da Académica de Coimbra prestaram-lhe uma homenagem única.

Dia triste, esse Dezembro. São sempre tristes despedidas, e esta era uma despedida especial. Guilherme Espírito Santo resolvera abandonar o futebol, o desporto que era apenas um dos muitos que praticava. O campeão dizia adeus.
Tinha acabado de cumprir 30 anos. Nasceu no dia 30 de Outubro 1919. Estávamos em 8 de Dezembro de 1949.
Tinha um nome tão extraordinário como o desenrolar da sua carreira: Guilherme Baptista Santana Graça do Espírito Santo. Um halo de santidade em redor de um homem mágico? Era um daqueles divinos negros que atravessaram como cometas o céu do futebol em Portugal. Veio ao mundo em Lisboa, passou parte da sua infância em Luanda, regressou à capital e ao Benfica.
Houve, portanto, na sua despedida, um Benfica - Sporting. Em veteranos. Do lado dos leões, jogou Peyroteo, seu grande rival e amigo. Foi Peyroteo que fez o único golo do jogo, batendo Dyson com um remate poderoso. Em seguida, os jogadores de ambas as equipas fizeram a guarda de honra. Espírito Santo era um senhor. Homem da mais simples das educações, cavalheiro intrínseco. Passou com timidez por entre as alas dos jogadores que o aplaudiam com o respeito que se presta a um ser humano de inequívocas virtudes. No meio do terreno foi ovacionado, em pé, por todo o público presente. Depois, o tenente-coronel Ribeiro dos Reis proferiu um discurso em sua homenagem: 'A festa de hoje deve considerar-se como de consagração de todas as virtudes que Espírito Santo revelou ao longo da sua carreira'. E as palmas estralejaram por todo  recinto, proporcionado à Pérola Negra um momento de grande comoção.

Modesto
Foi modesto a tua festa, pá!, cantaria o Chico Buarque. Festa modesta porque Guilherme Espírito Santo assim o quis. Rodeou-se dos velhos companheiros e adversários que tanto o respeitavam: Gustavo Teixeira, Francisco Albino, Rogério de Sousa, Valadas e Domingos Lopes, Artur Dyson, João Jurado, Abrantes Mendes, Aníbal Paciência, Fernando Peyroteo... Pediu a José Travassos que fosse o árbitro do jogo das velhas guardas, quis ter presente a Académica, clube onde tinha profundas amizades.
O poder não falhou a sua presença. Salazar Carreira leu a Espírito o louvor da Direcção-Geral dos Desportos. Os academistas fizeram questão de se fazer fotografar com ele de capa sobre os ombros, em honra profundamente universitária.
As primeiras guardas do Benfica e da Académica defrontaram-se no jogo da tarde amena de um Dezembro frio. Tavares da Silva, um dos grandes nomes do jornalismo português, desafiou nas colunas do seu jornal umas frases comovidas: 'Muito fez Espírito Santo para merecer a festa que teve. Talvez, até, uma desta demasiado singela para um desportista que atingiu no nosso país um lugar de eleição. Mas Espírito Santo apareceu modestamente, e modestamente quis sair'. De 1936, quando se estreou de águia sobre o coração na primeira equipa dos encarnados, marcando um golo num jogo amigável frente ao Vitória de Setúbal (5-2), àquela tarde de 1941 que num dérbi contra o Sporting se viu obrigado a substituir Martins na baliza do Benfica e fez uma exibição de encantar todos os que a ela assistiram, Espírito Santo foi marcando o futebol e o desporto entre nós. Primeiro africano a jogar na selecção nacional, no dia 28 de Novembro de 1937, com 18 anos, numa vitória histórica em Vigo, frente à Espanha, foi campeão e recordista nacional de salto em altura (1,82), em 1938, uma semana antes de bater, igualmente, o recorde nacional de salto em comprimento (6,89), vindo também a ser recordista de triplo salto (14,15). Além do mais, foi um tenista de excelência.
Não havia desporto para qual Guilherme não tivesse queda. Atleta completa. Atleta feliz. Nessa tarde de Dezembro, Guilherme Espírito Santo vestiu pela última vez a camisola encarnada da sua paixão como jogador de futebol - continuaria a praticar outros desportos -, e o Benfica venceu a Académica por 7-1. Nem por isso os estudantes deixaram de erguer bem alto as suas capas, desfraldando-as ao vento. A sombra batia no relvado e abria em flor. Como se o sino da velha cabra da Universidade também tocasse em nome de Guilherme, o Espírito Santo."

Afonso de Melo, in O Benfica

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