"Poucos treinadores nos últimos anos despertaram sensações tão díspares como Bruno Lage ao serviço do Benfica. No campeonato a história é conhecida: recuperou com 18 vitórias uma vantagem de 7 pontos em 19 jogos, jogando na casa dos 5 primeiros e foi campeão. Voltou a repetir a marca na época seguinte até à derrota no Dragão, onde curiosamente viu diminuir a mesma vantagem de 7 para 4 pontos. A partir daí soma um dos piores registos da história benfiquista.
Afinal, o que se passou? É a pergunta que todos tentam responder. Nestas coisas não acredito em respostas completas e definitivas. Mas, naquilo que ao jogo diz respeito, vale a pena tentar perceber o que mudou.
Nos últimos anos anos a frase é recorrente nas formações de treinadores “o modelo de jogo é algo inacabado”. Comecemos por aqui: Lage pegou na equipa em Janeiro de 2019 numa altura em que o Benfica jogava duas vezes por semana e, por força da campanha na Liga Europa, assim foi durante 3 meses. Não havia, portanto, grande tempo para treinar. Muito genericamente Lage apresentou as seguintes novidades: apostou bastante na transição ofensiva, em muitos jogos, abdicando frequentemente que 3/4 jogadores, alas e avançados, baixassem para o último terço a defender (ou ficando até em posições mais adiantadas) o que dava uma capacidade de progressão impressionante no momento em que ganhavam a bola. Por outro lado, os alas andaram em posições interiores tornando recorrente a formação de um linha de 4 jogadores entre linhas com os avançados, e não esquecendo os passes longos a variar corredor dos médios centro, nomeadamente Gabriel, que aconteceram mais vezes.
Não sendo obrigatório, estas mudanças deram naturalmente origem a um jogo acelerado e mais repartido no domínio, porque quem com poucos defende para rapidamente atacar com muitos faz a bola andar mais próxima das duas balizas. A muita presença de jogadores entre linhas, em ataque posicional, potenciou bastantes passes verticais para essa zona. Além do mérito próprio, foram visíveis as dificuldades dos adversários em contrariar esta matriz (no caso das transições nota para as excepções que foram Tondela e B-SAD num encontro analisado aqui). De uma forma ou outra, o Benfica acabava sempre por resolver os jogos até porque os resultados positivos fazem sempre acreditar no sucesso.
Então o que mudou? Voltemos à frase “o modelo de jogo é algo inacabado”, sustentada também na lógica de que os adversários com mais observações e análises minuciosas acabam por conhecer melhor a nossa equipa, o que requer uma evolução própria e mesmo quem ganha regularmente terá de apresentar novas soluções. No jogo jogado talvez tenha sido este o maior pecado de Bruno Lage . O caso paradigmático são os jogos no Dragão. Em 2019 O Benfica foi capaz de aguentar 90 minutos a defender com 6 e 7 jogadores à entrada da sua área e soltar os alas e avançados nas costas da 1ª pressão do Porto, criando assim muito perigo. A estratégia em 2020, no mesmo estádio, foi semelhante mas já o adversário estava bem melhor preparado para o momento da perda de bola e também sabia como atacar e aproveitar os espaços decorrentes desta ideia defensiva.
Todas as equipas do mundo têm características com pontos fortes e fracos. Será sempre a dose que faz o veneno. Uma equipa que goste de circular a bola com paciência se não reconhecer no momento certo as linhas de passe mais adiantadas, arrisca-se a não progredir. Bem como, no caso do Benfica, quem prefere forçar entre linhas mais cedo, se não cria engodo antes acaba por somar perdas de bola. E o que antes era um jogo um pouco partido mas controlado, passa a desligado sem tempo para associação com o portador da bola a ser demasiadas vezes precipitado. É nestas fronteiras que muitas vezes se joga o trabalho de um treinador. Realçar constantemente no jogo aquilo em que somos bons, não dar espaço a que fraquezas apareçam muitas vezes. Com algum azar à mistura, e a enorme desvantagem que foram as bolas paradas, Lage, que dominou este aspecto na perfeição em 18/19 não o conseguiu em 19/20.
“Nós os marxistas somos muito bons: das últimas 3 crises mundiais, previmos 5”
Na ânsia de explicar o ciclo negativo do Benfica há várias teses. Uma das mais populares é a ausência de João Félix. Foi muito influente, o seu substituto mais directo até estava bem mas nem jogou muito tempo devido a lesão/opção (Chiquinho) e aquela posição é chave para o modelo implementado. Tudo verdade mas não é suficiente para explicar tudo.
Há quem duvide da responsabilidade de Lage no sucesso do ano passado. Este raciocínio tem, desde logo, que responder a duas perguntas: o que mudou para a sequência de vitórias ter começado com este treinador, não sendo ele protagonista? E, nesta tese, se o treinador em 2020 é o mesmo e não teve influência antes, o Benfica começou a não ganhar porquê? O princípio da análise que nem sempre o resultado corresponde ao nível exibicional tem as suas vantagens. Há mesmo derrotas e vitórias mentirosas, não se prolongam é por um ciclo de 38 jogos divididos de igual forma em duas épocas ( interrompido somente por um empate e derrota para o campeonato). Quem faz ouvidos moucos a um registo destes entra num bom conforto intelectual que é directamente proporcional à sua preguiça: os treinadores que ganham a jogar como eu gosto têm sempre mérito, os que eu não gosto não têm grande responsabilidade no sucesso. O mesmo se aplica a quem enuncia sempre as limitações, esquecendo que as virtudes são suficientes não para vitórias pontuais, mas sim para ciclos positivos alargados.
Vários autores do Lateral Esquerdo escreveram um livro sobre o Benfica enquanto Lage foi treinador em 18/19. Naturalmente os elogios foram muitos mas também sempre houve consciência das questões passíveis de melhorar no modelo (algumas expressas no livro): a excessiva dependência de quantos jogadores ficavam na frente em transição ofensiva, a limitação (imposta ou natural) de Vlachodimos a jogar com os pés, e de à mínima pressão jogar longo, tornando a 1ª fase mais exposta ao condicionamento adversário ou o alinhamento da linha defensiva, que demasiadas vezes deixou a desejar, aspecto essencial para quem quer defender com poucos à entrada da sua área. O ponto é que a estas questões foram sobrepostas outras positivas de forma regular (à excepção da Liga dos Campeões onde as fraquezas foram mais evidentes)
Bruno Lage teve obviamente mérito na forma como levou o Benfica ao título. Em circunstâncias adversas trouxe as ideias certas ( as possíveis também?) para o contexto em que encontrou a equipa. Fez o plantel acreditar até pela humildade que demonstrou “são os jogadores que estão a fazer de mim treinador”. Na gestão do grupo talvez não tenha sabido lidar com o facto de os jogadores mais influentes deixarem de ser os melhores, mas isto já é entrar no campo da especulação. Leva uma das melhores e piores sequências que um treinador do Benfica já fez. Ignorar qualquer uma delas não fará justiça ao seu trabalho.
Declaração de interesse: sou (orgulhosamente) co-autor do livro “O Efeito Lage” que aborda a época de Bruno Lage como treinador do Benfica na época 18/19"
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