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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

OS “OUTSIDERS” DESPORTIVOS



 Howard Saul Becker, sociólogo americano, escreveu um livro muito interessante sobre os “Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio”, em 1963, fornecendo bases teóricas importantes para a teoria da rotulagem. O termo “desvio”, na sociologia americana, tem um sentido mais abrangente do que delinquência e dos comportamentos que transgridem as normas aceites por um determinado grupo social ou por uma determinada instituição. Sabemos que todos os grupos sociais instituem normas e esforçam-se por as aplicar, pelo menos em determinados momentos ou em certas circunstâncias. As normas sociais definem as situações e os modos de comportamentos apropriados: algumas ações são prescritas (o que é “bom”) e outras são interditas (o que é “mau”). Quando um indivíduo transgride uma norma em vigor, ele pode ser visto como alguém particular, em que não se pode confiar. O indivíduo, na perspetiva de Becker, pode ser considerado “estrangeiro” (outsider) ao grupo. Mas o indivíduo que é etiquetado assim pode ver as coisas de uma outra forma. Ele pode não aceitar a norma segundo a qual o julgam e pode recusar ou negar a competência ou a legitimidade daqueles que o fazem. Os transgressores podem estimar que os julgamentos são estrangeiros ao seu universo. Isto pode aplicar-se em muitos domínios, nomeadamente o desporto, que se tornou uma atividade social de primeira importância. Dou um exemplo concreto: os ciclistas que se dopam podem considerar que somos “outsiders” ao seu universo, pelo que não aceitam o nosso julgamento. As pessoas que fumam haxixe podem considerar que aqueles que não fumam nada têm a dizer sobre o assunto. E isso também se pode aplicar ao primeiro-ministro, António Costa, quando defende o seu apoio à recandidatura do presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, e que isso, afinal, não tem “rigorosamente nada” a ver com a sua vida política ou funções.

Para muitos, o desporto é portador de valores humanistas, com princípios éticos e virtudes morais. O sucesso do desporto parece natural e nada incomoda as consciências. Mas, na realidade, existe um desfasamento entre a realidade e a teoria. Uma organização desportiva não pode ser analisada como um conjunto transparente, que muitos dirigentes querem que ela seja. Ela é um reino de relações de poder, de influência, de mercadoria e de cálculos. Os agentes sociais, na terminologia do sociólogo francês Pierre Bourdieu, com as suas liberdades e racionalidades, com os seus objetivos e as suas necessidades, são “construções” e não entidades abstratas. E sabemos muito bem que os agentes sociais raramente assumem objetivos claros e ainda menos projetos coerentes. Normalmente, eles são múltiplos, mais ou menos ambíguos, mais ou menos explícitos, mais ou menos contraditórios. Ao longo do tempo, eles mudam as ações, rejeitando umas e descobrindo outras, num caminho caminhando, com imprevistos e reajustamentos. Nesse sentido, o seu comportamento é ativo. E mesmo se constrangido ou limitado, o seu comportamento não é determinado. Um comportamento tem sempre dois aspetos: um ofensivo, que procura agarrar as oportunidades, tendo em vista melhorar a sua ação; e outro defensivo, que é manter e alargar a sua margem de liberdade, logo a sua capacidade de agir. A globalização do fenómeno desportivo confirma a existência de um mito e a sua celebração cíclica proíbe a cada um dos agentes sociais a verdade do desporto moderno, apesar das evidências e dos escândalos que se acumulam. O desporto não pode ser um substituto, sobretudo quando muitos cidadãos passam por grandes dificuldades e a quem é necessário propor soluções concretas.

Vítor Rosa, in a Bola

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