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segunda-feira, 5 de outubro de 2020

DE TEILHARD DE CHARDIN A ANTÓNIO DAMÁSIO



 Quando, no raiar da década de 60, tentei chegar à compreensão da Lei da Complexidade-Consciência, de Teilhard de Chardin, logo me pareceu evidente que aos dois infinitos que assustavam Pascal (o infinitamente grande e o infinitamente pequeno) importava acrescentar o infinitamente complexo onde, através do fenómeno da cefalização, o Espírito desponta. Assim, a Evolução, em Teilhard, é uma subida para o Espírito: é uma subida da Matéria à Vida e da Vida ao Pensamento. E, no Pensamento, do animal que sabe ao homem que sabe que sabe. E, com o ser humano, a hereditariedade de cromossómica, veiculada por genes, passou a noosférica, transmitida pelo meio ambiente, pela cultura (a cultura, de facto, não se transmite hereditariamente). E assim o ser humano surge inteiramente “bios” e surpreendente e inteiramente “logos”. A Evolução tem, de facto, um sentido: o Homem – o Homem que é, simultaneamente, Matéria, Vida e Espírito. O livro de Jean Le Boulch, Vers une science du mouvement humain (Les Éditions ESF, Paris, 1971), que rejeitava o dualismo metodológico de Descartes, e adiantava a criação da ciência do movimento humano, ou seja, sem que o tornasse público, fez um “corte epistemológico – o livro de Jean Le Boulch encontrou-me com alguma preparação para entender os móbeis da sua atitude, dando especial atenção ao significado biológico e filosófico do movimento. Na página 105 deste livro, ele sublinha mesmo que uma educação do corpo, sem outros objetivos que os da saúde e da recreação, omite boa parte do conteúdo paradigmático que deve norteá-la. Também para Jean Le Boulch a ginástica sueca de Ling não passa de uma caricatura do mecanicismo cartesiano. O primado da perceção sobre a razão, em Merleau-Ponty, dilucidava situações onde o dualismo antropológico cartesiano não cabia também. E de Merleau-Ponty trazia eu algumas ideias da Faculdade de Letras, que me faziam alinhar o passo pela fenomenologia…

Por isso, mal me chegou às mãos o livro de António Damásio, O erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano, (Europa-América. Lisboa, 1995) retenho na memória a alegria que me tomou, ao lê-lo, embora a minha ignorância, no que à neurologia diz respeito. Mas, porque é filósofo o médico António Damásio e eu mero “aprendiz de filosofia”, ousei entrar, com o devido respeito, numa obra de tão vasta informação erudita. Aliás, a invulgar culta inteligência e a exemplar devoção ao convívio ciência-filosofia de António Damásio a tanto me convidavam. Segundo ele, um neurologista de fama que abrange o mundo todo, “a razão humana está dependente, não de um único centro cerebral mas de vários sistemas cerebrais, que funcionam de forma concertada, ao longo de muitos níveis de organização neuronal” e que portanto “todos estes aspectos emoção, sentimento e regulação biológica desempenham um papel na razão humana” (op. cit., p. 15). No INEF, no ISEF e na FMH, a conclusão final de António Damásio já era um dado adquirido, a começar pela recusa da ideia de um espírito sem corpo. Mas, reconheçamo-lo, sem o suporte neurofisiológico do autor deste livro, que vinha trazer um valioso contributo à ciência em trabalho interdisciplinar com a filosofia, como outros sábios médicos o têm feito, com inteiro aplauso, ao longo da História da Medicina. Em entrevista à Dra. Clara Ferreira Alves, jornalista e hermeneuta da cultura, no Expresso, de 2020/9/26, afirma o Doutor António Damásio: “O clima, as alterações que nos matam e fazem sofrer são resultado da nossa ação. Os animais são apanhados nela. Estes problemas estão conectados. Clima, animais e vírus têm as escolhas do homem na origem. Não deverá estranhar-se, por isso, que uma biologia do comportamento se adentre nas fronteiras da filosofia, designadamente da axiologia. O corpo determina a visão do mundo. Daí, “um movimento dentro da ciência, constituído por pessoas que estão interessadas em pensar a sua ciência, dentro da história, fazendo a ligação às humanidades e à filosofia”…
Guardando certas semelhanças com Teilhard de Chardin, António Damásio opina que “não há consciência sem sentimento, A consciência começa no momento em que há sentimento. E não é possível compreender a consciência sem compreender a relação entre mente e corpo. E não só para os seres humanos. A mente existe e atua dentro do corpo. O sentimento é o processo biológico que permite essa relação”. Mas não é verdade que no ser humano se erguem questões que se situam, para além do âmbito da biologia? E que por isso não há formas inferiores ou superiores de vida, pois que todas são momentos da Evolução? Por isso, cada organismo percebe o mundo, baseado no seu sistema de perceção e de valoração. Fazendo minha uma frase de André Breton, em Teilhard de Chardin e António Damásio, tudo se passa “como se eu me tivesse perdido e me viessem dar notícias minhas!”. Mas tornemos ao António Damásio da referida entrevista: “As emoções fazem parte do armamentário para lidar com a vida à nossa volta. E têm longos anos. Não aparecem nas primeiras criaturas vivas. Nas bactérias, há aspetos emocionais, mas não há emoções. E muito menos sentimentos. A emoção está ligada ao comportamento e não à mente, nada tem de subjetivo. O que é subjetivo é o sentimento”. Bebi, a largo fôlego, nos últimos trinta anos do século passado, o que, pela minha impreparação científica, pude aprender em Jacques Monod, em François Jacob, em Henri Laborit, em Freud e noutros autores de menor nomeada, como Marc Oraison: (autor que o António Alçada Batista me aconselhou, numa das minhas habituais visitas à Livraria Moraes):”aquilo que é especificamente humano, para um conhecimento científico moderno, não é já apenas a estruturação molecular ou o funcionamento fisiológico das organizações cada vez mais complexas, que constituem o animal superior: é muito precisamente este mundo absolutamente novo e infinitamente vasto da relação. Relações intersubjetivas, múltiplas e recíprocas; relações intergrupos, com as suas mil e uma modalidades e as suas diferenças consideráveis de intensidade emocional, é tudo isto que constitui o facto humano como tal” (Marc Oraison, O acaso e a vida, Moraes Editores, Lisboa, 1973, p. 63).
António Damásio, tamisado pela ciência e a ética, escreve no seu A Estranha Ordem Das Coisas (Círculo-Leitores, Lisboa, 2017): “Aumentar o conhecimento da biologia, desde as moléculas aos sistemas, reforça o projeto humanista. Vale também a pena repetir que não há qualquer conflito entre as versões do processo cultural, que favorecem fatores culturais autónomos, ou seleção natural ou seleção natural e transmissão genética. Ambas as versões estão em jogo. Os seus fatores atuam em ordem e proporções diferentes. De acordo com os problemas e as ocasiões” (p. 331). Extraindo desta entrevista o que ela me parece ter de singular, continuo a citar António Damásio: “A emoção é a reação ao exterior, é comportamento, e o sentimento é a forma como aprecias mentalmente a reação. Até ao momento em que aparecem os primeiros sistemas nervosos, há cerca de 500 milhões de anos, a possibilidade de ter uma emoção existe, mas a possibilidade de sentir não existe. Um vírus não pode sentir. É improvável que a nossa vida mental, a tua e a minha e a de todos exista há mais de 100 mil anos. Existem prolegómenos. A mente humana é muito recente”. Nas suas aulas da École Normale Supérieure, Merleau-Ponty, ao versar o tema clássico da “união da alma e do corpo”, meditava a filosofia de Maine de Biran (1766-1824), filósofo que chegou ao ponto de ter descoberto, há tão remotos anos, o estatuto subjetivo do corpo próprio, a partir da experiência do movimento (cfr. Luís António Umbelino, Somatologia Subjectiva – Apercepção de si e Corpo, em Maine de Biran, tese de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010). Por isso, fez bem o Doutor António Umbelino (que me distinguiu com a oferta pessoal da sua tese) em entrelaçar pensamento e corpo, Maine de Biran e Merleau-Ponty. Para eu poder descobrir, em António Damásio, mais uma fase evolutiva da “noogénese” de Teilhard de Chardin. Segundo Julien Green, “l’avenir n’est à personne”. Mas eu encontro, em António Damásio, um novo paradigma, uma nova episteme…
Manuel Sérgio: in a Bola

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