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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

UM COÁGULO NO FUNIL



 "À ciência exige-se um desapego que, muitas vezes, não consegue ter. Mesmo que sejam inegáveis os avanços científicos que quebraram, em eras medievais, certas crenças sobrenaturais e esotéricas, ficou difícil que o pensamento científico não ficasse apegado a noções, a ideias e, com muito maior gravidade, a desejos. O desejo que o resultado final seja aquele que auguramos e defendemos mete-se, tanta e tanta vez, à frente da análise. Isto porque a necessidade de validação exterior por parte do ser humano, e a procura dessa mesma validação, parece ser o escape e o caminho para preencher um vazio que sentimos. Assim, se o resultado for como imaginamos e defendemos, talvez não seja assim tão difícil e caótico viver num Mundo que goza, diariamente, com os nossos planos, teorias e crenças. Ora, no futebol não é diferente. Da ideia ao físico, da teoria à prática, do desejo à realidade, o caminho faz-se cheio de coágulos e raramente é fluído. No entanto, mais ironia menos ironia, mais desejo menos desejo, a verdade não fica beliscada por análises enviesadas. E se de facto, neste caso, o Benfica de Jorge Jesus estiver a um nível acima do que a maioria das pessoas consegue ver, em nada essa verdade será beliscada pelos posts, análises e crónicas que assim não o entendem. Quando muito, se for verdade que esse tal nível é superior, o Benfica da 2.ª vinda sairá por cima de tudo isso, calando as vozes dos profetas da desgraça.

Fica difícil distinguir o trigo do joio quando, em futebol, também há essa necessidade de validação que se soma ao desejo de se ver uma – a sua – equipa ganhar. Corromperá o pensamento científico, não só esoterizá-lo ou sobrenaturizá-lo, como também o corromperá o inofensivo desejo de que a sua equipa ganhe, ou que as outras percam. Mas há mais. O desejo que essa equipa, ou clube, seja vista pelos mesmos olhos, aparentemente impolutos, dos adeptos dessa mesma equipa. Vale assim para o Benfica, para o FC Porto ou Sporting. E todos deveriam saber que esse é um desejo impossível. Gastar energia a tentar que se realize é puramente uma manifesta perda de tempo. Até porque se for verdade o que os adeptos imaginam, essa verdade se demonstrará no plano físico. Mas, até agora, no caso do Benfica, por exemplo, essa verdade ainda não saiu da teoria. E o que se tem manifestado no plano físico é a falta de fluidez ofensiva e a falta de autoridade defensiva.

Como referido o posicionamento não era o melhor mas ainda assim dava condições para o colectivo do Benfica responder melhor (individualmente) a uma das jogadas de maior perigo dos gilistas. Zona onde a bola entra deveria estar mais bem coberta por Weigl, mas ainda assim alguma atrapalhação individual permitiu a criação de um lance de golo iminente

Outro jogo, este contra o Gil Vicente em Barcelos, e a mesma dificuldade dos encarnados em explorar o posicionamento que Jorge Jesus instala na equipa. Um posicionamento que, a meu ver, não é bom. É excelente! A ideia de que, quebrada a barreira entrelinhas, os jogadores fiquem um-para-um, dois-para-dois, três para três com só uma linha pela frente é, repito, excelente e bem pensada. A ideia de posicionar os jogadores em somente dois corredores tem a vantagem de criar essa igualdade ou superioridade mas, neste caso, há também um se. Um enorme se, diria.
Muito por aqui se tem falado da evolução defensiva, nas organizações e transições das equipas pequenas e médias. Obviamente essa evolução contempla os espaços que o treinador do Benfica vê como mais valias a explorar. E se é positivo que os jogadores fiquem mais próximos para facilitar a eficácia dos passes, é também manifestamente arriscado que vários deles fiquem atrás da linha de meio-campo e à frente da linha defensiva, porque isso cria a obrigatoriedade da bola passar essa linha. Sabendo disso, os treinadores adversários vêem esse espaço como nuclear nas suas organizações, deixando o Benfica com poucas hipóteses. Uma delas é a de insistir por aí, outra delas é a de evitar essa aglomeração e essa faca de dois gumes. Fica é certo que quer o Benfica escolha uma ou outra, a capacidade técnica e de decisão para jogar nessa zona tem de ser extremamente alta e eficiente. E quer jogue por fora, ou por dentro, a intensidade na circulação nunca pode ser tão baixa e pausada como foi neste jogo, ou na enorme maioria dos jogos das águias esta época.
E para juntar a esta indecisão, ou Sophia’s Choice, poderemos juntar a tal incapacidade gritante para ganhar duelos e não estragar o posicionamento (mais uma vez excelente) que o treinador do Benfica pede, quer em organização, quer em transição. A questão será: chega um posicionamento evoluído ou excelente? Ou, dentro dele a responsabilidade individual e o grau de eficácia das acções, também é importante? Ficaria com a resposta de que essa responsabilidade e eficácia individual não só é importante, como é o mais importante para que um colectivo funcione. De outra maneira bastaria juntar onze bacanos e arranjar um modelo super-evoluído para ganhar a Champions. Sabemos que assim não é, como sabemos que o Sport Lisboa e Benfica não tem onze bacanos dentro de campo. Tem onze profissionais que, há largos meses, têm deixado a dúvida de conseguirem explorar certas ideias, modelos e teorias, para cumprirem o que esperam de si. E se o que se espera é a excelência ou, pelo menos, estar um degrau acima dos rivais, então essa expectativa terá de ser refeita quando se olham para estes meses de reinado de Jesus. Isto porque fica claro que o Benfica tem de melhorar colectivamente em todos os momentos e aspectos, mas virá essa melhoria do plano do desenho e intenção colectiva, ou virá da melhoria do individual para elevar o colectivo?

O posicionamento ofensivo do Benfica pretende que a equipa crie igualdade ou superioridade quando a bola entra entrelinhas. Ainda assim a coisa não é tão fácil como a imagem parece querer fazer parecer. Para lá entrar a eficiência técnica terá de ser alta (e a coragem também); depois, lá, mais ainda o grau de decisão terá de ser elevado, para depois sim, se tirar real vantagem disso. Fará sentido o posicionamento ser este quando o grau de aproveitamento é tão reduzido?

Algo que funcionará como bom exemplo desta dualidade será o caso do quinto momento, ou dos esquemas tácticos, ou das mais vulgarmente conhecidas bolas paradas. Seja como lhe quiserem chamar, o posicionamento que Jorge Jesus desenha conseguiu sempre registos fantásticos nesse aspecto do jogo. E se recordarmos Bruno Lage, veremos que nos seus primeiros meses como treinador o seu Benfica sofreu um golo de pontapé-de-canto, para a partir do 12.º mês passar a quase conceder em todo o escanteio que tivesse contra si. É uma questão de posicionamento, ou é uma questão de vibração colectiva e individual? É que o posicionamento era o mesmo, mas os níveis anímicos, mentais e emocionais da equipa não o eram – longe disso. A mesma coisa contra o Gil Vicente onde o Benfica concede quatro oportunidades que o seu posicionamento deixava resolver aos seus jogadores. Não era o melhor posicionamento, é certo, mas em todos eles os jogadores, individualmente, poderiam ter resolvido melhor dentro desse posicionamento. Mas não o conseguiram, e o Gil criou num cruzamento para a área, num lance em organização (que o Benfica não resolveu se pressionava se fechava) e em dois pontapés-de-canto, quatro situações de golo iminente e que, são aqui usadas e lembradas porque um dos melhores indicadores para se aferir a qualidade de uma equipa são as situações de golo que concede, ou não concede aos seus adversários. Os nossos Videos são criados com Poderá isto parecer uma cruzada para se acharem falhas na equipa.
Poderá parecer que se querem omitir os positivos para se enaltecerem os negativos. Mas, na realidade de quem olha com objectividade para o actual futebol do Benfica (e não de quem quer que aconteça algo de mal ao clube ou à equipa – é para o lado que durmo melhor, até porque quem ganha a Liga não me paga contas, sendo que Portugal está a milhares de Km’s de distância nas minhas pretensões)… na realidade de quem olha para o futebol do Benfica com objectividade, fica difícil encontrar de positivo que uma equipa que controla os jogos com ritmo excessivamente pausado e que evita as zonas que o seu técnico tem como nucleares para se criarem oportunidades, possa ter algo positivo para enaltecer. E olhando para outras criações de Jesus, sobretudo dos seus Benficas facilmente se encontrará diferenças na intensidade com bola e sem bola, como no grau de eficiência e na maneira evoluída como outros dos seus jogadores resolviam ações nas quais hoje o Benfica emperra. E não há desejo absolutamente algum nisto senão o de dar a conhecer algo que esteja bem perto da verdade na análise ao actual Benfica.
Por fim, outro aspecto que pode influenciar análises. Sabemos das sensações que o futebol provoca, como sabemos do despertar de emoções que certos momentos futebolísticos proporcionam a quem os recorda. Mas há algo, em futebol, que não se pode escamotear. Na maioria dos 90 (e tal) minutos que compõem um jogo, nada de verdadeiramente entusiasmante ou fantástico acontece. E jogando sabemos também que são escassos os segundos e minutos que um jogador pode passar com a bola. Porém, num lado completamente antagónico à realidade do jogo, o adepto passa os 90 minutos à espera de ver esse algo fantástico, esse algo entusiasmante. Mas agora imaginemos um jogador que, não sendo Diego Armando Maradona (ou mesmo sendo ele) quer marcar um golo à Maradona em todas as ações. Imaginemos o grau de sucesso que teria tal jogador, mesmo tendo sido tocado por anjos à nascença. É que o desenho do futebol do Benfica (que repito é excelente!) quer que os jogadores actuais quase que repliquem o golo do vídeo abaixo em todas as jogadas. E, como sabemos, nem todas as jogadas desse mesmo Benfica terminaram com esse efeito. Mas a maior categoria dos jogadores, a maior panóplia de recursos que ofereciam ofensivamente (quer no espaço interior ou em largura), aliadas ao tal posicionamento, libertavam a equipa para que coisas mais parecidas com esta acontecessem mais frequentemente. E esta é uma constatação que, desculpe quem se ofenda, tem de ser feita. Claro que a isto, não esqueçamos, têm de ser somada a evolução defensiva dos adversários, como a menor apetência dos atletas actuais para decidir bem acelerando para intensidades mais próximas das que realmente criam mossa nas defesas. O que nos remete para uma das mais interessantes questões em futebol: até que ponto se pode fazer evoluir um jogador? Como tudo em futebol evoluiu, outras soluções haverá para fazer um jogador transcender o seu talento, a sua capacidade de decisão, o seu nível de intensidade e rapidez de pensamento para decidir melhor com eficácia? Até que ponto poderá Jesus chegar com o actual plantel? Ou será o mercado a melhor solução, sendo que é impossível uma maior transcendência nas capacidades dos actuais jogadores?"

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