A Síndrome de Clotilda continua, tal qual fantasma colonial, a pairar sobre o desporto português. Não devia porque Portugal, para além das ridículas ambições dos seus dirigentes em matéria de medalhas olímpicas, acima de tudo, está moralmente obrigado a respeitar o seu passado colonial. No que teve de bom e no que teve de mau.
Lorene Bazolo é uma atleta de origem congolesa (Congo Brazavile) especialista na velocidade pura. Foi recordista nacional do Congo nos 100m. Representou o seu país em três edições dos Campeonatos Africanos de Atletismo e nos All-Africa Games de 2011. Fez parte da Missão Olímpica do Congo Brazavile nos Jogos Olímpicos de Londres (2012). Em 2013, veio para Portugal onde, depois de representar o JOMA, no final de 2014, transferiu-se para o Sporting Clube de Portugal. Em 2015 representou o Sporting na Taça dos Clubes Campeões Europeus de Atletismo. Na época seguinte adquiriu a nacionalidade portuguesa (Cf. site/SCP). Nada tenho a dizer quanto ao facto de clubes portugueses terem contratado a atleta. E ela, como cidadã do mundo, tem o direito de desejar para si uma vida tão boa quanto possível no país que a aceitar receber. Foi Portugal, ainda bem. Quanto à naturalização, desde que se tenha processado como a de qualquer outro imigrante também nada há a dizer. O que lamento é que Lorene Bazolo com um estatuto de dupla nacionalidade, não possa continuar a representar o seu país de origem nos Jogos Olímpicos de Tóquio tanto mais que esteve nos Jogos Olímpicos de Londres integrada na Missão do Congo Brazavile. É inaceitável que, num ato de “rapina desportiva”, a atleta passe a representar Portugal nas competições desportivas internacionais, incluindo os Jogos Olímpicos. Um Governo composto por vários elementos de ascendência colonial, o que em função da nossa história, deve ser para todos nós um orgulho, ao nível das Políticas Públicas em matéria de desporto e diplomacia, devia tratar estas questões com muito mais inteligência e outro cuidado. Jacques Rogge, antigo presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), durante a realização dos VIII Jogos Africanos em 2003 em Abuja na Nigéria, afirmou aquilo que há muito vai no espírito daqueles que ainda acreditam que o desporto pode ser um instrumento ao serviço da humanidade. Disse ele que se opunha à compra de atletas oriundos de países subdesenvolvidos por parte das nações mais ricas, que pretendem “aumentar o seu medalheiro em competições”, destruindo o desporto tanto no país de onde o atleta sai como no país onde o atleta entra.
A este respeito, o que se tem vindo a passar nos mais diversos países do mundo, do ponto de vista dos princípios e valores olímpicos, é inaceitável. E o argumento estafado do “como os outros fazem nós também temos de fazer” ao estilo “Maria vai com as outras” só revela uma certa estupidez natural de dirigentes profundamente ignorantes e incompetentes.
Portugal não é um País qualquer. Tem obrigações perante um passado de mais de quinhentos anos. Um passado colonial que, nas suas singularidades, foi bem diferente dos demais regimes colonialistas como o belga, o inglês, o holandês, o espanhol, o alemão ou o francês. Por isso, não se pode ignorar a história, perverter a cultura, esquecer o altruísmo e destruir a dignidade nacional pela ganância atávica por umas medalhas olímpicas.
Tal como em finais do século XIX os países europeus olhavam para África a fim de lá irem buscar as matérias-primas que haviam de alimentar a máquina industrial, assim também, hoje, os países europeus olham para África para lá irem buscar a “matéria-prima” necessária para alimentar a máquina trituradora da alta competição que suporta a indústria dos espetáculos desportivos incluindo os Jogos Olímpicos. E hoje, na maior das selvagerias, muitos países europeus entretêm-se a destruir os sistemas desportivos dos países africanos com o objetivo de, através dos resultados desportivos, catalisarem as estratégias mercantilistas no quadro da competição económica à escala mundial.
Infelizmente, sob um manto indelével de uma olímpica ignorância, apesar dos ridículos “honoris causa” que por aí se distribuíram, somos levados a concluir que o espírito de Clotilda (1860), o último navio negreiro, continua presente no seio de uma sociedade medíocre, desumana e mesquinhamente oportunista. Clotilda embarcou coercivamente, nos Reinos Africanos de Whydah e Dahomey situados no atual Benine, mais de uma centena de seres humanos a fim de serem vendidos como escravos nos EUA (Alabama).
Por isso, lamento que o Sr. Presidente da República que, na tradição que vem do tempo da Monarquia e, em especial, do Rei D. Carlos, deve ser o patrono do desporto nacional e como, ao tempo, referia Diana uma leitora da revista “Tiro e Sport” (1906-01-31), considerado “o primeiro sportsman portuguez”, esteja tão mal informado em matéria de desporto nacional como tivemos a oportunidade de constatar na cerimónia, com inaceitáveis laivos militaristas (29021-07-05), em que o presidente do COP, em nome do Chefe de Missão ao Jogos Olímpicos de Tóquio (2021), apresentou cumprimentos ao Presidente da República.
Gustavo Pires, in a Bola
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