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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

" DEIXEMO-NOS DE HISTÓRIAS. O SPORTING É GRANDE, O PORTO É GRANDE, MAS O BENFICA É O BENFICA "

 


"Às vezes foi sobre futebol, outras sobre política, religião ou geografia. A conversa durou mais de três horas e o Professor Neca, o melhor amigo do desconforto, tirou da mala de viagem lembranças de uma carreira de 40 anos como treinador e que conta com passagens por oito países estrangeiros e 21 clubes, só em Portugal. Ao longo do tempo em que, sempre focado em tornar realidade aquilo com que sonhava à noite, foi jogador, professor de Educação Física, de onde vem a sua alcunha, e treinador, colecionou episódios com nomes como Eusébio ou Mário Wilson. Das novas gerações, orientou Paulinho, Rodrigo Pinho, Nanú ou Helton Leite. Quanto ao que lhe falta fazer no futebol, responde a piscar o olho ao mundo do dirigismo.

– O tipo dinâmico que queria sempre mais –
«Gostei sempre mais de jogar do que de treinar»

Bola na Rede: Tornou-se treinador em 1980. Enquanto jogador, chegou onde queria?
Professor Neca: Cheguei onde me foi possível, não onde queria. Queria ter chegado aos mais altos patamares: jogar muitos anos na Primeira Liga, chegar à seleção… Não me foi possível, porque o contexto era complexo. Com 17 anos, tinha tirado o curso industrial de eletromecânica. Nós sabíamos que, antes do 25 de abril, tínhamos duas certezas que eram morrer e ir para a tropa. O serviço militar apanhava-nos na melhor fase da nossa vida, entre os 20 e os 24 anos, que era quando um indivíduo se começava a afirmar como jogador de futebol. Como pensava já de uma forma adulta, acabei por ir para o serviço militar como voluntário dos 17 aos 21 anos. Aos 21, estava livre para correr atrás do meu sonho, que era ser jogador de futebol.

Bola na Rede: Nesse período deixou de jogar totalmente?
Professor Neca: Não, porque acabei por fazer o meu serviço militar no continente e não fui para o ultramar, para as ex-colónias. Em todo esse período, continuei a jogar. Joguei, na formação, no Gil Vicente. Estava a cumprir o serviço militar e aproveitava também para estudar à noite, em Leiria. Os últimos dois anos e meio do serviço militar fiz na Base Aérea Nº5 de Monte Real e aproveitei para tirar a secção preparatória aos institutos industriais. Estive para ir jogar na União Desportiva de Leiria, mas a equipa estava na distrital, então jogava no clube da minha terra, o Santa Maria FC, do concelho de Barcelos. Aproveitava para jogar na base e vinha fazer os jogos ao fim de semana. Aos 21 anos, antes de acabar a tropa, aproveitei as férias para ir treinar a três clubes: o Gil Vicente FC, o Varzim SC e o GD Riopele, um clube do concelho de Famalicão que chegou à Primeira Divisão e que agora foi extinto. Acabei por aceitar o Riopele, porque oferecia valências mais favoráveis, tais como o emprego. Era a equipa mais estável das três. Os clubes só libertavam os jogadores se entendessem. O Riopele acabou por comprar a minha carta ao Santa Maria. Acabei por ficar lá dois anos. Trabalhava de manhã ou de tarde, conforme os treinos. Era eletricista. Todos os dias me levantava de manhã e dizia ao espelho “estar dentro de uma empresa não é para mim”, porque sempre gostei de desporto. Comecei a procurar uma possibilidade de ir para Educação Física, deixando a eletricidade para correr atrás daquilo que gostava. Acabei por tirar o curso de Educação Física, juntando a isso o jogar futebol. Tinha grandes dificuldades financeiras – era filho de mãe solteira – não tinha possibilidades. Tinha que ganhar o meu próprio dinheiro para me poder sustentar e correr atrás de algo que era indispensável para mim já nessa altura: ter uma base cultural que me desse as ferramentas para encarar a vida de uma forma mais sustentada. Estávamos ainda no período antes do 25 de abril. Embora o futebol desse para me sustentar, existia um para além do futebol. Consegui fazer esse paralelo. Cheguei ao futebol profissional, sim, mas nunca ao mais alto nível – jogar num FC Porto, SL Benfica, Sporting CP, na seleção -, não tive essa possibilidade.

Bola na Rede: Foi professor desde 1976.
Professor Neca: Correto. Em 1976, acabo o curso de Educação Física e fui professor até 1990. Treinei na Primeira Divisão a dar aulas. Fazia as duas coisas. Quando chego com o Aves à Primeira Liga, dava aulas de Educação Física, era treinador, observador, treinador de guarda-redes e preparador físico.

Bola na Rede: Sobre acumular funções, no Santa Maria já tinha sido treinador/jogador.
Professor Neca: O Santa Maria estava a passar grandes dificuldades e pediu-me para ser treinador/jogador.

Bola na Rede: Como é que geria a relação com os seus colegas?
Professor Neca: Temos que falar no que era o treinador nessa altura. Os tempos eram diferentes, o nosso país tinha muitos analfabetos. Isso era muito significativo. O que a minha mãe mais me pedia era “tenta saber ler e escrever e, se for possível, vai para professor”. Isto para dizer que com 26 anos já era professor de Educação Física, já tinha jogado em clubes profissionais, já tinha uma identificação com o que era o futebol profissional, já tinha estado quatro anos no serviço militar, uma escola de formação, de disciplina, respeito e rigor. Foi um ano fantástico, correu extremamente bem. Subimos de divisão. O clube queria que eu ficasse, mas tinha que partir para outra situação que aquilo já não me motivava. Disse que ia deixar de jogar para me concentrar só nas aulas. No entanto, aquilo era pouco tempo. Era um tipo dinâmico, queria sempre mais. Estive algum tempo parado. O Prado estava na Terceira Divisão e estavam a fazer um campeonato muito bom. Vieram ter comigo à escola. Acabei por regressar ao futebol. Sentia que tinha jeito para o futebol. Até podia contar aqui uma história.

Bola na Rede: Conte.
Professor Neca: Quando vou para o Riopele, o clube tinha duas opções: ou eu entrava no Riopele, ou entrava um outro miúdo que estava no Benfica de nome João Alves, o Luvas Pretas. O João Alves foi dos melhores jogadores da história do futebol português. Eles acabaram por optar por mim e a minha carta foi mais cara do que a dele. Sempre tive a preocupação de ter uma profissão para além do futebol. Percebia que o futebol era instável. Dei sempre grande prioridade à profissão. Nunca deixei de correr atrás daquilo que era a segurança, de, em termos culturais, me formar como pessoa. Ao longo do tempo, ajudei muitos jogadores de futebol a formarem-se como professores de Educação Física, na Economia, na Medicina, na Engenharia, porque os incentivava e dava possibilidades, até em termos de treino, para que eles o pudessem fazer. Gostei sempre mais de jogar do que de treinar. O jogar futebol tem uma magia tremenda. Estive no Prado um ano. Jogava e pediram-me também para ser preparador físico. Lá fui preparador físico. Algum tempo depois, disse para me deixarem só a jogar. Fiquei até final da época. Atualmente, o GF Prado está nos distritais. Nessa altura, foi a única vez que esteve na Segunda Divisão Nacional. Acabámos por descer. O clube entra numa crise grande e digo que me vou embora para jogar mais um pouco noutro lado qualquer. O clube incentivou-me a ficar como treinador. Percebia-se que havia ali um treinador. Os jogadores aceitavam a minha liderança com a mesma naturalidade com que respiramos. Comecei a treinar o Prado. Todos os dias haviam dificuldades, mas todos os dias transmitia esperança de que as coisas iam melhorar. Foi nessa esperança que lutámos até ao último jogo para subir de divisão. E há coisas do destino. Nas Aves, num dos últimos jogos, estava 2-2 nos 90 minutos e há um penálti a nosso favor. O meu central bate o penálti com tanta violência que vai ao poste e a bola vai para o meio-campo e, no contra-ataque, o Aves faz o 3-2 e acaba o jogo. Não subimos de divisão. Um dos clubes que subiu foi o Valdevez.

Bola na Rede: Que foi para onde foi depois…
Professor Neca: Exatamente. Parte dos jogadores do Valdevez foram meus colegas na Segunda Divisão no Prado. Foram os jogadores que pressionaram a direção do Valdevez para que o treinador fosse eu. Acabo por ir para o AC Valdevez da Segunda Divisão Nacional. Sem subir, acabei por subir.

Bola na Rede: Seis anos depois de ter começado a treinar já estava na Primeira Liga. Foi uma ascensão meteórica?
Professor Neca: O Aves queria que eu ajudasse a estabilizar o clube na Segunda Divisão. Acabámos por organizar bem a equipa com jogadores da zona. Contra todas as previsões subimos à Primeira Divisão Nacional. Tinha 33 anos. A partir daí foi a peregrinação que veio até hoje.

Bola na Rede: Nesse ano com o Aves na Primeira Divisão tem o Silvino na baliza. Em entrevista ao BnR, ele disse: “Foi o Professor Neca que me incutiu esse espírito de conquista, de querer ganhar sempre mais. Eu, antes, treinava, fazia o meu trabalho, e se perdesse, olha, perdia”. Essa mentalidade acompanha o Professor ao longo de toda a sua carreira?
Professor Neca: Sempre. As nossas experiências ajudam-nos a compreender um conjunto de coisas. O Silvino é um amigo. Precisávamos de um guarda-redes de referência, porque a nossa equipa era uma equipazinha com limitações. O Silvino acaba por vir para o Aves. Forcei muito para que viesse um jogador diferenciado. O Silvino era um guarda-redes extraordinário, mas acreditava pouco nas suas capacidades. Em termos profissionais, acabámos por nos juntar no Mundial da Coreia e do Japão, ele como treinador de guarda-redes e eu como adjunto e analista do António de Oliveira. Quando eu era jogador, o treino era muito empírico, ou seja, os treinadores eram ex-jogadores e repetiam no treino o que faziam enquanto jogavam. Era só treino físico e íamos cansados para o jogo, aproveitávamos o jogo para descansar. Quando começo a ser treinador, treino o jogo, aquilo que se faz hoje, mas que nos anos 80 eu já fazia. Os resultados começavam a aparecer. Os jogadores davam-se bem com isso. Não iam cansados para o jogo, estavam mais disponíveis. Além do Silvino, há outros jogadores que me diziam que se sentiam muito bem.

Bola na Rede: Derivado da experiência que foi ganhando, acabou por ter oportunidade para, mais tarde, ir para o Benfica só que enquanto treinador-adjunto. Se não fosse num contexto como o do Benfica, via isso como um passo atrás?
Professor Neca: O Artur Jorge era o Mourinho daquela altura. Tinha sido campeão europeu, tinha acabado de ser campeão francês pelo Paris Saint-Germain FC, era uma grande referência como treinador, tal como, enquanto jogador, também o tinha sido. Havia essa oportunidade de ir para o Benfica como adjunto. Era mais uma forma de ir para um grande clube, o clube de maior expressão. O Benfica é o Benfica, deixemo-nos de histórias. O Sporting é grande, o Porto é grande, mas o Benfica é o Benfica. Era uma oportunidade de contactar com um treinador que era uma grande referência do futebol português. Recusei a continuidade no Braga como treinador principal, para ir para adjunto.

Bola na Rede: Numa lógica de aprendizagem?
Professor Neca: O povo português diz, do alto da sua sabedoria, que “vivemos a aprender e morremos sem saber”. Se tu queres saber tens que viajar ou ler. O viajar também era fundamental para que tivesse contacto com outras gentes, com outras pessoas e com outras formas de pensamento. Mantive-me no Benfica por dois anos. O Artur Jorge saiu e ficou o Capitão Mário Wilson. Aprendi muito com Mário Wilson também. O Benfica tinha dois projetos nessa altura – o Alverca e um protocolo com a seleção de Angola da qual poderia ser selecionador. Amavelmente, o Benfica deu-me a escolher um destes dois projetos. Mário Wilson disse-me “Neca, eu vou morrer sem nunca ser selecionador de um país estrangeiro. Vai a Angola, eu dispenso-te uma semana”. Fui a Angola contactar com aquela realidade e acabo por me tornar selecionador angolano durante dois anos.

- Ligado pela cultura -
«Fomos para um jogo de enormíssima responsabilidade num avião que nem bancos tinha. Íamos sentados em grades de cerveja»

Bola na Rede: Qual foi o primeiro impacto de passar de uma realidade como a do Benfica para a da seleção angolana?
Professor Neca: Angola foi uma experiência enriquecedora. O Mário Wilson disse que me dispensava oito dias, mas que tinha que estar na semana da final da Taça de Portugal. Ganhámos 3-1 no Estádio do Jamor.

Bola na Rede: Um dia, apesar de tudo, complicado…
Professor Neca: Muito, foi a final do very light. Tinha ido a África porque tínhamos feito um estágio com o Benfica na África do Sul, mas a África do Sul não tinha nada a ver com a restante África. Em 1994, há a queda do Apartheid e Nelson Mandela assume a presidência da África do Sul. Fizemos o estágio na Cidade do Cabo que estava muito mais desenvolvida do que Lisboa. A África do Sul era um país muito à frente no tempo. Portugal, no pós-25 de abril teve uma transformação brutal com os dinheiros da Comunidade Europeia. Quando chego a Angola, ao sair do avião, constato um bafo de calor tremendo. Angola estava em Guerra Civil entre UNITA E MPLA. Saio do aeroporto… tudo partido, em termos de organização, uma confusão tremenda. No percurso entre o aeroporto e o hotel, carros partidos… O país teve uma Guerra Colonial e depois arrastou-se com mais 20 e tal anos de Guerra Civil. Foi muito difícil para aquele povo. Fiquei desanimado, mas depois comecei a contactar com as pessoas. Um país são as pessoas. Não são os grandes prédios ou as coisas muito bonitas, são as pessoas. Ia na rua e falavam-me no Benfica, nunca na seleção de Angola. As pessoas conheciam-me, porque existia o fervor pelos três grandes clubes portugueses, Benfica, Sporting e Porto, e também entra um bocado a Associação Académica de Coimbra aí, pelas passagens da classe política de Angola por Coimbra. Falo com o presidente da federação e, passados três ou quatro dias, estou-me a mudar. Primeiro foi o drama à chegada e depois as pessoas, a vontade, os afetos, a ligação, o conhecimento que tínhamos uns dos outros, a vontade comum de ir para um desafio. Era um desafio brutal. Saí de lá como selecionador de Angola.

Bola na Rede: Em que é que se baseava essa sinergia entre o Benfica e a seleção angolana?
Professor Neca: Diria que Portugal, Angola, Moçambique, Índia eram a continuidade. Estares em Angola é como estares em Portugal. O angolano estar em Portugal é como estar em Angola. É a cultura que liga as pessoas. Havia um conjunto de laços comunicantes muito naturais. Sentíamo-nos em casa. Era impressionante o conhecimento que os angolanos tinham de Portugal essencialmente através do futebol. Vais à Malásia, à Tailândia, à Mongólia, à China e se falares lá no primeiro-ministro [ninguém conhece], se falares no Cristiano Ronaldo eles põem-se em sentido. Sentíamo-nos em casa, porque estávamos com o futebol. Esta ligação era fortíssima, principalmente pelo afeto que os países das nossas ex-colónias têm com os principais clubes portugueses – Benfica, Sporting, Porto. Se olhares para a própria história, quando te falo do Mário Wilson, por exemplo, ele era moçambicano, o Eusébio era moçambicano, o Dinis era angolano, o Jordão era angolano. Era gente desse povo, povo esse que adorava os seus ídolos. Nós fazíamos parte dessa família futebolística.

Bola na Rede: Estou a ver que veio de lá realizado.
Professor Neca: Completamente. Sabia que ia para um desafio brutal. No dia em que acabou a Taça de Portugal já eu estava a organizar a seleção de Angola, porque passados 15 dias íamos ter um jogo de mata-mata para o Mundial com o Uganda. Uns dias depois, já estava um conjunto de jogadores que iam fazer parte da seleção de Angola a vir para Portugal para fazermos oito dias de trabalho aqui. Metade dos jogadores da seleção jogavam no futebol português e metade no campeonato angolano. No ano anterior, Angola tinha ido pela primeira vez à CAN. Angola estava pouco organizada. Logo no primeiro jogo com o Uganda, porque tinham prémios em atraso, os jogadores não queriam sair se não pagassem os prémios.

Bola na Rede: Como é que desbloqueou a situação?
Professor Neca: É a vontade, a determinação e a experiência acumulada. Na noite antes da partida para Campala [capital do Uganda], os jogadores não queriam ir. Reuni com todos no hotel. Foi uma noite dramática, estávamos entre o ir e o não ir. Convenci os jogadores que o importante era irmos para Campala e ganhar, que eu garantia que o dinheiro vinha. Aquilo para resolver os problemas era muito muito difícil. O dinheiro era pouco e as dificuldades eram muitas. Depois, tínhamos uma viagem que estava prometido ser num voo normal. Os jogadores disseram “Prof., não vai ser voo normal”. Estava prometido ser o avião onde normalmente ia a comitiva do presidente José Eduardo dos Santos. Quando vamos para o avião, para irmos para um jogo de enormíssima responsabilidade, tínhamos um avião que nem bancos tinha, que era uma coisa medonha. Não havia nada, não havia casas de banho, não havia bancos para sentar… Íamos sentados em grades de cervejas, em bancos improvisados. Foi o voo em que tive mais medo até hoje. O presidente da federação, que era deputado, ia ali sentado connosco, com a cerveja e o whisky a rolar. Para eles, aquilo era normal. Fui lá encostado a um canto. Não tínhamos cintos de segurança, não havia coisa nenhuma. Lá fizemos a viagem, que era para durar três horas, e demorámos quatro horas e meia. Fomos para o jogo e correu-nos muito bem. Ganhámos 1-0.

Bola na Rede: Os jogadores chegaram a receber os prémios?
Professor Neca: O Lito [Vidigal], que foi meu jogador na seleção de Angola, e outros tantos jogadores, disseram que a organização do futebol de Angola começou por mim. Começámos progressivamente a organizarmo-nos e eles pagaram.

Bola na Rede: Só saiu de Portugal com 17 anos de carreira. Ir para além-fronteiras assustava-o?
Professor Neca: Hoje, temos para cima de 500 treinadores fora do país. Nessa altura, estava eu na seleção de Angola, estava o Nelo Vingada na seleção da Arábia Saudita e o Carlos Queiroz nos Emirados Árabes Unidos. Uma mão cheia chegava e sobrava para dizer os treinadores que estavam no estrangeiro. Era o desafio. Tudo aquilo a que cheirava a dificuldade, eu ia. Os 17 anos de experiência davam-me capacidade para me ajustar às dificuldades e poder ajudar a encontrar as melhores soluções.

– Trabalhar onde todos querem passar férias –
«Um rapaz de 30 anos disse-me que já podia morrer, porque já tinha conhecido o Eusébio»

Bola na Rede: Partilhou balneário com o Eusébio. Ele era o treinador de guarda-redes enquanto o Professor esteve no Benfica. Como foi partilhar experiências com ele?
Professor Neca: O Eusébio era uma criatura fantástica. Quando estivemos na África do Sul, já tinha aberto o Apartheid, estava lá um rapaz moçambicano e estava muito afastado. Veio perto de mim e disse “tenho um sonho na minha vida, conhecer o Eusébio”. Disse-lhe “então, ele está ali”. Perguntou-me “como é que hei de falar com ele?”. “Vem comigo”, respondi-lhe. O Eusébio era um monstro como jogador, uma lenda do futebol mundial. No final, o rapaz, com cerca de 30 anos, contou-me: “Vivo aqui com grandes dificuldades e tinha medo de morrer. A partir de hoje, já posso morrer, porque já tive a felicidade de conhecer o meu Deus que é o Eusébio”. O Eusébio quebrava barreiras. No Benfica, toda a gente o respeitava. Ele estava onde queria, onde entendia que devia estar. Uma vez, eu fui à Coreia analisar um jogo para Portugal e ele ia comentar os jogos com um outro indivíduo… que era o Pelé. O Eusébio tinha muito medo de andar de avião. Ele levantava-se sempre muito tarde e perguntei-lhe se ele já tinha comido alguma coisa. Respondeu-me “vou para o avião, não tenho vontade de comer”. Disse-lhe que tinha ido ao buffet do hotel e que tinha comido um bocadinho de cabrito com um bocadinho de arroz. O Eusébio começa-se a rir, rir, rir. Ele diz “você não comeu cabrito, você comeu cão”. Lá não havia cabrito, havia cão, mas eu não sabia. O cão é um petisco que os sul-coreanos e os chineses gostam muito. Do hotel ao avião, ele foi o tempo todo a rir-se de mim.

Bola na Rede: A experiência nas Maldivas também teve o mesmo impacto que a de Angola?
Professor Neca: Soube através da Federação Portuguesa de Futebol que havia uma vaga para selecionador das Maldivas. Concorri num lote de 70 treinadores a nível mundial. O escolhido acabei por ser eu. Existia a curiosidade das Maldivas terem pela primeira vez um selecionador de um país colonizador. Não sabia quase nada das Maldivas. Ia sempre com a convicção de que tinha que ter sucesso. Como não sabia o que ia encontrar, levei material de treino para lá. As Maldivas são um país lindíssimo. Só um tsunami é que me tirou de lá.

Bola na Rede: O professor acaba por ir trabalhar para onde a maioria das pessoas quer ir passar férias.
Professor Neca: Nessa altura não se falava das Maldivas como se fala agora. Lá vou para as Maldivas com todo o material. O país é muito pequenino, tem um clima fantástico, um mar idílico. É um sítio onde qualquer pessoa gostaria de estar. Era um país pequeno, pobre, mas extremamente bem organizado. Quando começo a contactar com a realidade, eles tinham tudo: cones, bolas… A experiência que já tinha ajudou-me a inserir naquela realidade. Tínhamos logo um jogo importante com a Mongólia. Tinha um mês para organizar aquilo. As Maldivas são um país com 200 ilhas habitadas e mil que não estão habitadas. Tudo ilhas muito pequeninas, mas muito bonitas. O aeroporto é só uma ilha. Malé, a capital, também é só uma ilha. Têm uma ilha para tratar do lixo. Têm resorts em diferentes ilhas. A experiência ajudou-me a organizar a seleção. O campeonato tinha oito clubes, sete da capital e um de outra ilha. Pedi para reunir todos os treinadores para ter perceção de como organizar a seleção. Era uma seleção muito rudimentar.

Bola na Rede: Essas equipas eram compostas apenas por jogadores do país?
Professor Neca: Só jogadores e treinadores locais. Num jogo, a seleção tinha levado 17-0 do Irão. Pedi aos treinadores que me dessem os três melhores guarda-redes, os três melhores defesas-direitos, os três melhores defesas-esquerdos… Em função disso, juntei 37 jogadores que, no entendimento deles, eram os melhores das Maldivas. A partir daí, começo a fazer a minha filtragem.

Bola na Rede: Existiam jogadores das Maldivas no estrangeiro?
Professor Neca: Nenhum. Fomos jogar à Mongólia e ganhámos 1-0. Foi a primeira vez que as Maldivas ganharam um jogo fora do seu território. Foi uma festa muito grande. A Mongólia é um país de montanhas, não há mar. Nas Maldivas, durante todo o ano, a temperatura oscila entre os 23 e os 34ºC. Fomos jogar à Mongólia com -20ºC. Ainda assim, ganhámos 1-0. Passado cinco dias tínhamos o jogo da segunda mão.

Bola na Rede: O que é que fez para os jogadores não sentirem tanto essa diferença?
Professor Neca: Deram-nos lá umas meias-calças, que isso nas Maldivas não havia. Na Ásia, as federações trabalhavam muito bem combinadas umas com as outras. Pedi aos jogadores para porem papel de jornal, sacos de plástico, para atarem bem as botas para que não entrasse a humidade da neve. Na segunda mão, vêm eles – viemos até no mesmo avião – para as Maldivas. Digo aos indivíduos das Maldivas: “Eles trataram-nos muito bem, tratem-nos muito bem também. Levem-nos para o mar e eles que tomem banho no mar que eles vão achar uma delícia. Levem-nos para um resort“. Passei lá nesse resort no dia do jogo, de manhã. A temperatura da água a uns 24ºC. Os jogadores da Mongólia nunca tinham visto mar. Foi uma delícia para eles. Pedi aos meus jogadores que fossem para cima deles. Acabámos por ganhar 12-0. Com a temperatura a 34ºC e depois de estarem na água, queriam correr e não conseguiam. Um jogador no dia do jogo ou na véspera não pode andar a tomar banhos em água quentinha.

Bola na Rede: Em seleções mais rudimentares como a de Angola ou a das Maldivas, tinha cuidado em deixar uma base para que os treinadores que viessem a seguir não tivessem que começar do zero?
Professor Neca: Necessariamente. O treinador não é só o indivíduo só da técnica e da tática, é também o grande organizador.

Bola na Rede: Seguem-se experiências no Kuwait, em Moçambique, na Arábia Saudita, na Índia e, mais tarde, em Israel. Onde é que viveu episódios mais inóspitos?
Professor Neca: Foram todas experiências fantásticas. Nas Maldivas foi a primeira vez que vivi num país muçulmano. Quase sempre fiz isto: trabalhava fora durante um ou dois anos e regressava um bocadinho a Portugal. Tinha sempre mercado. Era a forma de não fazer o corte com a família e de não perder contacto com a realidade do nosso país. O futebol, a partir do ano 2000, sofreu uma alteração mais acelerada, tal como a própria sociedade. O futebol nunca se pode dissociar daquilo que é a realidade social. Portugal, no que diz respeito ao futebol, foi sempre muito vanguardista. Estamos na linha da frente no que toca à formação de treinadores e jogadores. No Euro 2004, estava na seleção das Maldivas, procurei ter férias para ter contacto direto com uma seleção que tinha sido campeã do mundo, a França. Como fui treinador do SC Tirsense e treinador do Aves, passei parte substancial da minha carreira nestes dois clubes. A França estava instalada num hotel em Santo Tirso e fazia os treinos nos estádios destes dois clubes. No pós-Maldivas passei por diferentes países e adaptei-me sempre muito bem. Tenho dificuldade em dizer qual o país em que me senti melhor. A Arábia Saudita, por os dois pilares da civilização muçulmana estarem lá, no caso, Meca e Medina, é, sem dúvida, o país mais conservador dos países muçulmanos. O facto de ser o único país do mundo em que as mulheres não conduziam mostra isso. A crise do petróleo é que levou a que libertassem a possibilidade de as mulheres poderem conduzir. Na Arábia Saudita estava num clube forte [o Al-Ittihad FC], em Jeddah. Jeddah é uma cidade onde passam todos os peregrinos que vão a Meca. Meca, em relação a outras cidades da Arábia Saudita, já estava mais desenvolvida, porque era uma cidade que contactava com povos vindos de outras latitudes. Estava com a equipa de sub-23. O Manuel José era o treinador da equipa A. Desenvolvemos um trabalho muito bom, porque também tínhamos excelentes condições de trabalho.

Bola na Rede: Nesse ano, não era para ter ido para a Arábia Saudita, mas sim para a Índia.
Professor Neca: Era para ir para o SC East Bengal, um dos principais clubes da Índia, mas ficava em Calcutá. Ainda não tinha bom conhecimento da cidade e não me cheirou bem. Acabei por optar pela Arábia Saudita, porque, em termos financeiros, era mais vantajoso e porque a Índia ainda estava numa fase de crescimento para aquilo que é o futebol profissional. Acabei por ir para a Arábia Saudita. Trabalhámos lá muito bem. Temos que nos aculturar rapidamente no sítio onde estamos. Se estamos na Arábia Saudita, temos que ser sauditas. Se estamos na Índia, temos que ser indianos.

Bola na Rede: Em termos de jogo jogado também pensa dessa forma?
Professor Neca: Em termos de jogo jogado, temos que perceber o que são os hábitos locais. Nos países árabes, os jogadores, às vezes, não vão ao treino. Se a mãe vai às compras, o filho vai levá-la.

Bola na Rede: Isso acontecia muitas vezes?
Professor Neca: Não muitas vezes, porque nós criámos hábitos de treino para que houvesse grande motivação dos jogadores. Assim, eles gostavam do treino e vinham mais vezes. Os jogadores estão no treino e querem é jogar. Se não jogam, já é mushkila [“problema” em árabe]. Havia outros treinadores, de uma linha que não a nossa, em que os treinos eram só correr e saltar. Há aspetos muito dos árabes. O clima na Arábia Saudita é quente. Eu ia todos os dias, ao nascer do sol, caminhar ou correr um bocadinho à beira-mar. Às vezes, levava um livro e deixava-me estar. Numa altura qualquer, numa zona em que não havia quase ninguém, estava sentado em cima de um livro. Passou um indivíduo que me disse que ali não gostavam que as pessoas se sentassem em cima de livros. É um sacrilégio uma pessoa estar sentada em cima de um livro. Pedi-lhe desculpa e retirei o livro. Culturalmente, os países são diferentes uns dos outros. Outra coisa que fui apreendendo foi que quando um indivíduo me aparecia pela esquerda para entrar, ele nunca entrava. Eu achava esquisito. O muçulmano dá sempre prioridade à direita. Por exemplo, o muçulmano nunca dá nem recebe nada com a mão esquerda, porque a mão esquerda é a mão para fazer coisas sujas.

Bola na Rede: O Professor está muito atento às questões geopolíticas. Quando esteve em Israel, sentiu a presença do conflito israelo-palestiniano?
Professor Neca: Há uma diferença abissal entre aquilo que é notícia e o que é a realidade. Quem não vive a realidade, imagina coisas que estão fora dela. Israel é o povo eleito. O israelita é um povo muito ligado e é isso que permite que continue a sobreviver. A partir da Segunda Guerra Mundial, os israelitas foram colocados no país. Nos anos 40, Israel era um pais tremendamente atrasado. Os israelitas foram para lá e começaram a transformar o país, que, agora, tem condições excecionais. É um país lindíssimo. Jerusalém é uma cidade que sempre sonhei conhecer. Tive o privilégio de trabalhar no Maccabi Tel Aviv FC, que ficava a cerca de 100 quilómetros de Jerusalém. Estive lá mais de 10 vezes. As três principais civilizações estão em Jerusalém – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – e convivem com uma naturalidade tremenda. Sentes que é um país onde há uma segurança musculada. Militarmente, estão muito bem organizados. Todos os cidadãos, rapazes e raparigas, têm dois anos de serviço militar e ninguém discute isso. Se me perguntares “os israelitas são os maus da fita e os palestinianos é que são os bons?”, isso é sempre complexo. A religião tem uma profundidade muito grande. Os líderes religiosos e políticos manipulam as religiões para o lado que melhor entendem. Não há um mau da fita. Israel tem que estar sempre bem preparado, porque senão é comido pelo que está à sua volta, por ódios sustentados através dos séculos. Os líderes políticos e religiosos estão interessados nesta conflitualidade. Claro, vi lá fundamentalistas judeus que são iguais aos fundamentalistas islâmicos. São irracionais em relação àquilo que é o respeito pelo outro. É um país seguro. Também é caro, mas os seus habitantes ganham bem. É um país culto em que a tecnologia e as universidades estão sempre à frente no mundo. Gostei profundamente de viver em Israel.

Bola na Rede: Os próprios clubes israelitas têm uma promiscuidade muito grande com a política. Por exemplo, o clube que o Professor eliminou na meia-final da Taça, o Beitar Jerusalem, tinha uma ligação muito forte ao antigo governo. Uma vez contrataram um jogador muçulmano e, do ponto de vista da revolta dos adeptos, foi algo muito impactante.
Professor Neca: Exatamente. Também há um clube do norte que é só muçulmanos. Foi o único clube onde tivemos que sair pela porta do cavalo. Era um conflito sempre presente entre esse clube e o Maccabi Tel Aviv. Havia um ódio muito grande entre estes dois clubes. Isso resulta do ódio instalado entre as duas religiões. Se tentares entrar na Arábia Saudita com o passaporte com carimbo de Israel, não te vão deixar entrar. O controlo que é feito para entrar em Israel também é tremendo. Fazem-no por uma questão de segurança. Em Belém, a parte palestiniana, tinha uma placa a dizer “proibida a entrada a israelitas”. Noutra visita a Belém, deixámos de ter GPS no carro. Quando há problemas, eles cortam a internet para não haver qualquer tipo de contacto. Vimos uma série de árabes. Aquilo estava a ser uma intifada entre palestinianos e israelitas. Israel será sempre um barril de pólvora, mas onde toda a gente se movimenta com tranquilidade, porque as forças armadas israelitas têm sempre o controlo das coisas.

– Paulinho, Rodrigo Pinho, Nanú e Helton Leite: o futuro dos ex-pupilos –
«4-4-2 para aqui, 4-3-3 para ali, mas o que importa é que estamos sempre a lidar com humanos»

Bola na Rede: Regressando a Portugal, na temporada 2012/13, treinou o Paulinho, atualmente no Sporting. Já naquela altura lhe reconhecia talento?
Professor Neca: Fui para o Trofense que estava com problemas terríveis. Tive dias para construir uma equipa para estar na Segunda Liga, senão o clube desaparecia. Organizámos uma equipa com poucos meios. Conhecia o Paulinho do Santa Maria. Tinha visto aquele miúdo, que era júnior e tinha feito um jogo nos seniores, e ele tinha qualidades. Perguntei ao presidente se podia ir ao clube da minha terra buscar o miúdo. O presidente diz-me: “Então estamos aqui a tentar formar uma equipa para a Segunda Liga e quer-me ir buscar um júnior ao Santa Maria?”. Respondi-lhe: “No lugar do Paulinho, preferia ir buscar o Ronaldo, dá?”. O Paulinho acabou por vir e começar a dar os primeiros passos comigo. Temos uma relação muito boa. Passado algum tempo, começou a evoluir de uma forma muito rápida, tal como esperava. Falava muito com o Paulinho. A determinada altura, liguei ao Rui Jorge e aconselhei-o a ir à Trofa ver o miúdo. O Rui Jorge tinha confiança em mim, porque sabia que não lhe ia indicar um jogador qualquer. Fez uma internacionalização, num jogo particular, pelos sub-21. Eu saí do Trofense. Não acabei a época, porque aquilo mudou de direção. O Paulinho ficou. Passado um tempo, disse ao presidente do Gil Vicente para o ir buscar. AA vida dos presidentes é difícil, porque não são bem aconselhados. Ainda bem que o Rui Costa é presidente do Benfica. É um homem que é do futebol, entende o futebol, identifica-se com o futebol e, seguramente, vai fazer um bom trabalho no Benfica. É importante que apareçam outros Ruis Costas no futebol. O presidente do Gil Vicente acabou por contrariar o movimento que estava por trás dele e foi buscar o Paulinho. Depois, teve a sorte de o Abel Ferreira o ir buscar ao Gil Vicente. O Abel Ferreira potenciou muito bem o Paulinho. Com ele, o Paulinho jogou com dois avançados e cresceu exponencialmente como jogador. Isso levou a que o Rúben Amorim, outro treinador jovem e que entende o que é futebol (temos ali treinador), o tivesse ido buscar por uma pipa de massa ao Braga. O Paulinho já chegou à seleção e vai voltar a chegar à seleção. O Braga baixou muito por lhe faltar o Paulinho. O Sporting foi campeão nacional com um golo do Paulinho. O que ele trabalha para a equipa, em termos coletivos, é de uma importância enorme.

Bola na Rede: Às vezes, é mais o espaço que o Paulinho abre para os outros. Mesmo que não apareça tanto em situações de finalização, a forma como se movimenta arrasta marcações para jogadores como o Pedro Gonçalves aparecerem na zona do ponta-de-lança e que acabam por beneficiar disso.
Professor Neca: Exatamente. A envolvência dele no jogo permite assistir, defender e criar espaços para os outros. O Pedro Gonçalves encheu o pote, porque esteve lá um indivíduo que trabalhou para ele. O Paulinho vai continuar a ser um jogador extremamente importante na equipa. Seria um jogador brilhante a jogar em 4-4-2, mas nós não temos muito essa cultura. Os clubes utilizam cada vez mais o 3-4-3 que foi a tática que deu o título de campeão, com toda a justiça, ao Sporting. Sem ter os melhores jogadores, teve a melhor equipa.

Bola na Rede: Em 2015, disse que se ia dedicar ao dirigismo. Se é verdade que não mais assumiu uma equipa enquanto técnico principal, também é verdade que nunca deixou o banco de suplentes. Está a adiar esse adeus?
Professor Neca: Nunca mais serei treinador principal em Portugal. Ponto final parágrafo. Nesse ano, tinha saído de uma reunião para ser diretor desportivo do Gil Vicente. Ainda nem tinha chegado a casa e, no caminho, o Lito Vidigal, que foi meu jogador na seleção de Angola, liga-me. Disse-me que ia para um projeto e que queria que fosse com ele. Aquela ideia também me entusiasmava. Ia como conselheiro, como treinador dos treinadores, o homem mais experiente, o homem que estava entre a equipa técnica, a direção e os jogadores. Teria toda a liberdade para estar onde entendesse.

Bola na Rede: Numa lógica contrária ao que hoje acontece, ou seja, o treinador-adjunto ser um treinador jovem que, mais dia menos dia, vai assumir uma equipa como técnico principal…
Professor Neca: Foram seis anos e foi uma experiência fantástica. Fui com o Lito para FC Arouca e acabámos por ir à Europa. O Arouquinha era um clube com carências tremendas, mas lá pusemos mãos à obra. Já na segunda época, aparece-nos o convite para o Maccabi Tel Aviv. O diretor desportivo era o filho do Johan Cruyff, uma das minhas grandes referências enquanto jogador, o Jordi Cruyff. Aprendi muito com ele. Partilhámos muitas coisas sobre futebol.

Bola na Rede: Tinha uma visão do jogo parecida com o pai?
Professor Neca: Completamente. Não é por acaso que ele agora foi para o FC Barcelona como conselheiro do presidente. Um pouco como o que eu fazia no Maccabi Tel Aviv: um indivíduo que está perto da estrutura e que ajuda, nas dificuldades, a colocar pontes onde não existe contacto. Isso é fundamental no futebol. 4-4-2 para aqui, 4-3-3 para ali, mas o que importa é que estamos sempre a lidar com humanos. É aí que entra a importância do treinador mais experiente. Depois, estivemos [com Lito Vidigal] no Boavista. Não tenho dúvidas nenhumas que o Boavista descia de divisão nesse ano. Foi um desafio tremendo que tivemos. Estávamos em penúltimo. Desde que pegámos no Boavista, só Porto, Benfica e Sporting fizeram mais pontos. Até que o Braga fizemos mais pontos. De seguida, apareceu o Marítimo e eu já estive para não ir, porque tinha um convite para ser diretor desportivo da Primeira Liga, aquilo com que sonhava. Acabei por ir com o Lito, mas não correu bem. Agora, estou um bocado parado a olhar para as coisas, vendo e refletindo o futebol. Não tenho dúvidas que o futebol tem uma enorme lacuna. Quem está perto da administração, dos jogadores e dos treinadores, na generalidade, não tem competências para ajudar a que exista uma comunicação estreita, limpa e sem conflitos. Foi a experiência que tive ao longo de 40 anos a trabalhar em contextos diferentes. Normalmente, os clubes, para arranjarem um lugar para um indivíduo que acabou a carreira, metem-no no diretor desportivo. Isto não faz sentido. Não pode ser, porque não tem as competências para ajudar o clube a ter resultados positivos. Vejo clubes a cometerem erros tremendos, porque falta maturidade e comunicação. Há treinadores jovens que reúnem mais competências do que eu para treinar. Mais competências do que eu para ser dirigente, não vejo ninguém.

Bola na Rede: As equipas por onde tem acompanhado Lito Vidigal ficam rotuladas por um estilo mais defensivo. Dá-lhe o mesmo gozo trabalhar uma equipa para estar bem organizada defensivamente e fazer disso a sua maior arma, do mesmo modo que lhe dá gozo trabalhar outras estratégias?
Professor Neca: Há o aspeto tático em que olhamos para os jogadores e vemos o que eles podem dar. Se estamos em equipas com grande qualidade, o nosso futebol tem que ser mais ousado. Se temos menos qualidade, tem que ser menos ousado e estar em função das qualidades dos jogadores. Um treinador de futebol só sobrevive se tiver resultados. Os melhores treinadores não são o Mourinho, o Guardiola, o Klopp ou o Mancini. São grandes treinadores, mas os melhores são os que conseguem otimizar os jogadores que têm à sua disposição para fazer uma boa equipa. Por exemplo, hoje o Benfica está melhor, porque melhorou defensivamente. Jorge Jesus percebeu que se não for segura a defender, a equipa não faz coisa nenhuma. Nós, para irmos com o Arouca às competições europeias, tínhamos que ter uma estratégia de jogo que permitisse jogar bem para fazermos pontos. Não é a equipa que tem mais posse de bola que ganha, mas sim a que, estrategicamente, sabe potenciar os melhores jogadores. É nesse equilíbrio que se monta a estratégia para ganhar jogos.

Bola na Rede: No final de um jogo no Dragão, em que, já pelo CS Marítimo, conseguem vencer por 3-2, disse, no final, o seguinte: “Taticamente fomos perfeitos. É na estratégia que as equipas menos dotadas podem ganhar às grandes equipas”. Para si a estratégia é o fator mais decisivo num jogo?
Professor Neca: Nesse jogo, estrategicamente, estivemos muito bem. Estava a ver o aquecimento e vejo o Amir, o guarda-redes, com uma disponibilidade e concentração com que nunca tinha visto até então. O guarda-redes, normalmente, é o primeiro a entrar e o primeiro a sair do aquecimento. Vou ao balneário, ainda estava a equipa a aquecer, e coloquei-me perto do Amir e disse-lhe que ele ia fazer uma exibição do outro mundo. Não digo isto todos os dias. Sentia mesmo aquilo. Vamos para o jogo e ganhámos limpinho. Uma equipa que joga a defender não ganha 3-2 no Dragão. Três e podiam ter sido mais. O Amir defendeu um penálti. Numa estrutura, muitas vezes há jogadores que não são acarinhados como eles precisam para estarem em boas condições para a profissão deles.

Bola na Rede: Outros jogadores em evidência nesse jogo foram o Rodrigo Pinho e o Nanú. São jogadores úteis para o Benfica e para o Porto, respetivamente?
Professor Neca: Sem dúvida. O Benfica tem pontas-de-lança para todos os jogos e todos de qualidade. Mesmo assim, o Rodrigo Pinho já está a jogar e fazer golo. Eu dizia-lhe: “Ó, Pinho, vou ali para o banco sentar-me só para te ver treinar”. Tinha e tem uma qualidade extraordinária. “Perdeste muito tempo a andar aqui em clubes secundários”, dizia-lhe também. É um extraordinário profissional. Vai jogar no Benfica muitas vezes. Pode ser titular do Benfica, claramente. O Nanú é um menino guineense, bem formado, com um potencial enorme. Tem que estar psicologicamente no auge. Vai ser muito difícil vingar no Porto, porque o Porto é um clube para ser campeão, mas tem qualidades intrínsecas.

Bola na Rede: E o Helton Leite? O que acha da gestão que tem sido feita da baliza do Benfica?
Professor Neca: O Helton Leite está com o Odysseas. Foi meu guarda-redes no Boavista FC. O pai dele [João Leite] foi guarda-redes no Vitória SC e foi meu adversário. Conversava com o Helton e dizia-lhe que ele tinha tudo para dar o salto para o Benfica, Porto ou Sporting. Está no Benfica. Já defendeu, e bem. Agora está a jogar o Odysseas, que também é um belíssimo guarda-redes e tem mais anos de Benfica, e está a defender muito bem. O Helton está à espera da oportunidade dele. Um clube como o Benfica tem que ter dois guarda-redes deste nível, tal como o Porto tem o Marchesín e o Diogo Costa. Neste momento, o Marchesín, que é guarda-redes da seleção argentina, não entra no Porto, porque o Diogo é um guarda-redes de grande categoria. O Helton Leite tem que trabalhar para quando tiver oportunidade responder da mesma forma como está a responder o Odysseas.

Bola na Rede: Na segunda passagem pelo Vitória FC, com Lito Vidigal, pegam na equipa a quatro jogos do fim. Foi uma pequena loucura?
Professor Neca: O Lito telefona-me à meia-noite. “Mister, temos aqui uma situação. Faltam quatro jogos e o Vitória FC quer que a gente vá para lá. O que é que acha? O capitão, o [José] Semedo, e o sub-capitão, o Zequinha, vieram a minha casa“. Fizemos as malas e fomos embora para Setúbal. Disse ao Lito que se os capitães tinham ido ter com ele era porque a equipa estava com ele. Nesse dia, às quatro da manhã arrancámos para estarmos em Setúbal às sete. No penúltimo jogo, estávamos a jantar para ir jogar no dia seguinte com o Sporting, que tinha ganho os jogos todos com o Rúben Amorim. Durante o jantar, estava a jogar o CD Tondela com o Braga. Para nós, era importante que o Braga ganhasse, como era normal, para o Tondela ficar ali quase na descida. Resultado? Tondela 1-0 Braga. Estávamos a jantar e ouviam-se as moscas, um silêncio sepulcral. Toda a gente estava a pensar “já fomos, já descemos de divisão”. Eu e o Lito estávamos à frente um do outro. Concluímos que tínhamos que ter uma reunião com os jogadores. Ninguém podia ir para a cama sem conversarmos. Tínhamos que empatar ou ganhar em Alvalade, onde ninguém tinha ganho depois do Rúben Amorim assumir o comando. Tivemos uma conversa com a equipa como achávamos que devíamos ter, porque senão ninguém ia dormir. Convencemo-nos de que íamos ganhar ou empatar em Alvalade, só dependia de nós. Empatámos 0-0. Depois, tínhamos que ganhar à Belenenses SAD em casa. A massa adepta mobilizou-se e ganhámos 2-0. Passado umas semanas, tudo acabou com o drama dos incumprimentos.

Bola na Rede: O que é que ainda lhe falta viver no futebol?
Professor Neca: Muita coisa. Gostava muito de conhecer Timor-Leste, através do futebol. Gostava de continuar a dar palestras. Estou também ligado à Associação de Treinadores. Gostava de ser diretor desportivo, porque acho que tenho aí um espaço."

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