"Ainda mal refeito das inesperadas exibições de Antoine Griezmann como “meneur” de jogo da França, entre dois médios de cobertura e três avançados a ser o melhor jogador da primeira semana do Mundial, apareceu-me Bernardo Silva a revelar que o seleccionador lhe dá autonomia para actuar onde e como entender.
As minhas primeiras reações foram de não acreditar numa coisa nem noutra. Mas, de facto, Griezmann assumiu com mestria uma posição de diretor de jogo dos campeões do Mundo. E, sim, o chefe da FEMACOSA corroborou a revelação do médio português durante a sua “aula” aos jornalistas na véspera da partida com o Uruguai: “tem liberdade total”.
E fez-se luz. Qual epifania, estava ali a solução para aquela frustração crónica que me matraqueava a cabeça após cada jogo da seleção, para dissolver aquela sensação de que, fosse qual fosse o resultado, faltava sempre qualquer coisa, para, enfim, satisfazer aquele desejo por “outro patamar” exibicional ao nível de um conjunto de atacantes de classe mundial.
O pequeno “je ne sais quoi” que falta na seleção de Portugal é, muito singelamente, a reinvenção do Bernardo Silva de sempre à dimensão do Griezmann de agora. E, assim ele queira, porque pode, vamos já hoje ver a transformação do humilde Smart em extravagante Corvette - que os carros que conduzem revelam muito sobre a personalidade de cada um.
Fui ver o que dizem especialistas sobre o francês e a discrição genérica assenta à medida no português, como se fossem gémeos falsos: “jogador versátil, pouco atlético, mas rápido a pensar e a executar, tecnicamente evoluído, excelente na construção ofensiva, no passe, que pode actuar como médio de ataque, extremo, falso 9 ou segundo avançado”. Voilá!
Se Antoine Griezmann, que até podia defender Portugal como Raphael Guerreiro, está apenas a uma assistência de igualar Thierry Henry e ultrapassar Zidane como o jogador com mais passes para golo na história da seleção gaulesa, Bernardo Silva deveria ser, hoje também, o recordista da seleção nessa função fundamental. Mas está tão longe do topo dessa tabela como distante da frente de ataque em campo. Portugal foi desenvolvendo nos últimos anos tantos médios defensivos, trincos profissionais, retranqueiros coriáceos, “duplos pivôs” (nunca pensei que um dia escreveria esta insanidade linguística) e todo o género de tutores e zeladores defensivos, que este sacrifício generoso mas patético de Bernardo Silva andar a correr atrás da bola e dos adversários a 50 metros da baliza se me afigura um autêntico atentado às ambições da seleção.
Não haverá por lá quem possa dar o corpo ao manifesto, inclusive com maior eficácia defensiva, e lhe garanta a liberdade e o espaço para pegar na bola e fazer jogar a equipa, como asseguram Tchouameni e Rabiot no esquema inteligente da França?
No Mundial, só empatam em toques na bola, 75 para Griezmann, 76 para Bernardo. Mas como explicar que o português praticamente só apresente zeros na estatística de ações ofensivas do jogo com o Gana e o francês já some cinco grandes oportunidades criadas (com uma assistência), nove passes-chave, quatro cruzamentos precisos?
Eu pensava que era culpa do treinador. Afinal, dizem-me que é responsabilidade do jogador que deve escolher o que for melhor para a seleção, em função “do que o jogo pede”.
“Se a equipa precisar mais de mim no apoio aos jogadores da frente…” Se precisar? Meu caro Bernardo, não só precisa como também dispensa completamente o que tem andado a “escondê-lo”, o desperdício de talento em trabalhos defensivos inglórios, tarefa muito nobre, mas pouco inteligente e contra-natura."
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