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sábado, 7 de janeiro de 2023

FUTEBOLÊS - F

 


"“Filosofia” é ganhar

Se Descartes fosse treinador de futebol diria “ganho, logo, existo”, colidindo de frente com o diletante Jorge Valdano, “el Filósofo”, para quem o jogo é (apenas) uma “desculpa para sermos felizes”, explicação sumária para a sua curta carreira de técnico de alta competição.
Arte ou resultado, bola ou esforço, êxtase ou sobrevivência, genética ou treino, ADN ou “Filosofia de jogo”?
É raro o dia que não ouvimos treinadores ou analistas avançarem decididos no campo da reflexão, inspirados em mestres que assumiram construir os seus modelos de jogo, de trabalho e de liderança a partir de ideias filosóficas - ou não fosse, por exemplo, o legado de Johan Cruyff sobre o futebol belo e de ataque plasmado num livro intitulado “Futebol, a minha Filosofia”, que orienta os seus discípulos.
O herdeiro Guardiola é incensado por declarar princípios básicos a que o marketing empresta uma aura de prolóquio metafísico e inovador: “somos bons porque mantemos a bola”. Mas a verdade é que José Maria Pedroto, há 40 anos, já declarava “se eu for dono da bola, serei dono do jogo”. Tal como Otto Glória, há 60, na metáfora da posse “não há omelete sem ovos”.
Novo fraseado, nem sempre coerente, para conjugar velhas ideias. E agora juntaram-lhe o ADN, que alguém já descreveu como a “filosofia da humanidade”, por condicionar a identidade e estrutura dos indivíduos e dos povos.
“O nosso ADN é ganhar”, proclamava Fernando Santos sobre a seleção nacional. “Não vamos abrir mão do ADN da equipe, sempre muito compacta e agressiva quando não tem a bola” - explicava Jorge Jesus sobre o seu Flamengo.
“Eu e o Corinthians temos um pouco do mesmo ADN”, dizia Vitor Pereira antes de deixar o clube de São Paulo para seguir as pisadas do “mister” no Rio de Janeiro. “Lendo, formamos o nosso ADN, o nosso código genético de escrita, o nosso estilo, conseguimos ter as nossas influências e a nossa identidade. No futebol é a mesma coisa”, comparava Freitas Lobo, influente comentador televisivo com livros publicados a respeito.
E assim não há jogo nem joguinho que não nos venham resumir peripécias, reviravoltas, falhanços, proezas e “remontadas”, às vezes por meras repetições de exercícios colectivos treinados exaustivamente, noutras por inexplicáveis acidentes ou golpes de sorte, com a boa da “filosofia de jogo”. E o ADN, a identidade, é o “passe-vite” da eloquência desportiva:
“A nossa maior vitória é hoje sermos fiéis ao nosso ADN, nas diversas moléculas que o constituem”, declarou Frederico Varandas num discurso aos sócios do Sporting, após o ano vitorioso de 2021.
É, pois, um conflito insanável que alimenta “flash interviews” e discussões de “experts”. Se alguém obtém vitórias e títulos, mas não cativa pelos espectáculos que proporciona, colam-lhe o rótulo de “resultadista” colocando uma repugnante carga negativa em cima da filosofia de ganhar. Mas os que não os alcançam, por mais espectaculares que sejam as suas equipas, rapidamente são atropelados pela cobrança dos troféus não conquistados - porque ninguém identifica um ADN perdedor ou uma Filosofia de derrota.
«Ninguém gosta de jogar bem e perder, só os que falam de filosofia», sintetiza o pragmático José Mourinho que, no entanto, em 2012 afirmou que aspirava “a mudar a filosofia futebolística (porque) não existem treinadores com as mesmas ideias”.
A “Filosofia” no futebol moderno ocupa um lugar de honra, depois de ter sido elevada a disciplina dos cursos superiores de desporto e de se tornar público que os principais treinadores se desenvolveram em contacto profundo com a sabedoria do maior pensador português nesta área, Manuel Sérgio, a quem José Maria Pedroto designou de “profeta”, antecipando-lhe o reconhecimento mundial que chegaria décadas mais tarde.
“Dava-me livros de filosofia para ler e um dia disse-lhe que aquilo rebentava-me a cabeça”, revelou Jorge Jesus, também discípulo de Cruyff, numa homenagem ao sábio professor que influenciou o pensamento futebolístico português e brasileiro, a nível académico, com um princípio simples mas revolucionário.
“Quem sabe só de futebol, de futebol nada sabe”, escreveu Manuel Sérgio. “O futebol é isto mesmo”, acrescentou Manuel José.

A seguir: G de Gestão"

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