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quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

MORREU AQUELE CUJA ALCUNHA TRADUZ A MAGIA DO FUTEBOL

 


"Pelé encantou uma infindável legião de adeptos que encontraram, no astro brasileiro, a personificação dos mais ousados sonhos de infância. Revelou, pelo exemplo, incluindo ante o Benfica, o muito que se poderia fantasiar com uma bola de futebol. Faleceu aos 82 anos.

Por muitos considerado o melhor jogador de sempre, Pelé, que nos deixou aos 82 anos, forjou uma carreira mítica. Espantou o mundo do futebol quando, aos 17 anos, em 1958, foi campeão mundial pelo Brasil após marcar dois golos na final. Já consagrado, teve aparições discretas nas duas edições seguintes devido a lesões, contribuindo, ainda assim, para o título brasileiro de 1962 (marcou no jogo inaugural). Em 1970, selou o terceiro triunfo canarinho na prova.
O México 1970 é o Mundial de Pelé. Embora já sem o ímpeto goleador de anos anteriores (foi autor de quatro, incluindo o primeiro da final), o "Rei" foi o epicentro de um futebol avassalador e vencedor assente em técnica e criatividade nunca vistas. Seis vitórias nos seis jogos disputados, com 19 golos marcados, quatro na partida derradeira ante a Itália. Puro deleite para milhões de adeptos que viram, pela primeira vez, a principal competição de seleções ser transmitida a cores pela televisão.
Houve também, antes de se ter tornado no porta-estandarte da primeira tentativa séria de introdução do futebol nos Estados Unidos da América, toda a brilhante carreira ao longo de mais de década e meia no Santos, pelo qual Pelé se destacou como figura de proa nos muitos títulos conquistados pelo clube santista. E foi de alvinegro que se deu a conhecer ao Benfica e se apercebeu da existência de um miúdo moçambicano com quem viria a rivalizar no topo do futebol mundial, Eusébio.
Pelé, o jovem prodígio, não chegara ainda aos 17 anos de idade quando defrontou o Benfica pela primeira vez, em 1957. Sob o comando de Otto Glória, o Benfica realizava a sua segunda digressão pela América do Sul, passados dois anos da estreia no outro lado do Atlântico. Invencível nos três primeiros encontros (dois empates com o Flamengo e um com o América), chegou a vez de se deslocar à Vila Belmiro para defrontar o Santos.
Rezam as crónicas que os encarnados fizeram a melhor exibição desde o início da digressão e que o resultado foi injusto. O 3-2 a favor do Santos teve, em Pelé, um dos seus principais artífices: abriu o ativo ("mercê de um excelente remate"); sofreu a falta que resultou no penálti do segundo golo santista; foi protagonista de "espantosa troca de passes" com Tite para este fazer o terceiro. Eis o cartão de visita apresentado por Pelé ao Benfica, numa história com mais capítulos, sempre desfavoráveis às águias.
Uma história que poderia ser diferente, corria o ano de 1958 e já Pelé havia bisado na final do Campeonato do Mundo (sendo autor de três golos nas meias-finais e do tento solitário do Brasil nos quartos de final – estreou-se na 3.ª jornada da fase de grupos). Mas lá chegaremos.
O encontro seguinte ocorreu em 1961, em Paris, tinha o Benfica acabado de se sagrar campeão europeu. Meio mês decorrido da épica vitória ante o Barcelona, as águias participaram no Torneio de Paris, ultrapassando o Anderlecht nas meias-finais. No jogo decisivo, o Santos de Pelé.
O resultado é de má memória (6-3 para os santistas), no entanto, o jogo merece realce na história do Benfica. Para se compreendê-lo há que recuar cerca de três semanas, mais concretamente ao jogo das reservas com o Atlético no preâmbulo da disputa da final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, em Berna. No onze figurou Eusébio, estreando-se de águia ao peito após vários meses de árdua luta na secretaria e alcançando um hat-trick no triunfo por 4-2.
Eusébio não foi utilizado na final com o Barcelona, mas continuou a demonstrar que as elevadíssimas expetativas criadas em torno da sua contratação eram solidamente fundadas. Assinou o único golo benfiquista no jogo da infâmia (derrota, por 4-1, em Setúbal, na 2.ª mão dos quartos de final da Taça de Portugal disputada no dia seguinte à final europeia); voltou a marcar na visita ao Belenenses na última jornada do Campeonato; e… de novo celebrou um tento da sua autoria no referido triunfo ao Anderlecht.
Chegado o desafio com o Santos, Guttmann optou pela experiência, embora com a surpresa de Barroca na baliza em vez de Costa Pereira por este se ressentir de uma lesão, fazendo apresentar os restantes titulares que conquistaram a Taça dos Clubes Campeões Europeus, em Berna.
O Benfica fez uma exibição desastrada na primeira parte, perdendo por 4-0 ao intervalo. Pelé, não surpreendentemente, esteve em destaque: fez o segundo golo, assistiu para o terceiro após, "por artes do diabo, desenvencilhar-se de três defesas encarnados que o rodeavam", e assistiu para o quarto. E eis que Eusébio foi lançado às "feras". No início do segundo tempo, a vantagem santista foi ampliada para cinco golos e então a letra M do mito Eusébio começou a ser escrita com tinta dourada: hat trick, em 18 minutos, a recolocar a incerteza no marcador (que poderia ter sido um póquer caso tivesse cobrado e concretizado a grande penalidade falhada por José Augusto). Já perto do apito final, Pelé fez o sexto dos brasileiros. E o jornal "L'Équipe" resumiu a partida numa frase: "Eusébio 3 – Pelé 2."
Por certo, terá sido nesse jogo que espoletou a grande admiração de Pelé por Eusébio, reforçada pela amizade anos depois, no Mundial de 1966, entre as duas grandes figuras do futebol mundial nessa década. O astro brasileiro, após a morte do Pantera Negra, declarou mesmo que considerava Eusébio um irmão.
Pelé voltaria a defrontar o Benfica em mais cinco ocasiões, vencendo quatro e empatando uma: nas duas mãos da Taça Intercontinental, em 1962 (3-2 na Vila Belmiro; 2-5 na Luz); no Torneio de Nova Iorque, em 1966 (4-0) – que Pelé entendeu, confessou-o mais tarde, como uma desforra pela eliminação do Mundial de Inglaterra em função da linha avançada benfiquista ser a de Portugal; e, em 1968, no Torneio Internacional de Buenos Aires (4-2) e num amigável em Nova Iorque (3-3). Destes confrontos, Pelé só não marcou nos dois últimos, merecendo realce aqueles que opuseram os campeões continentais.
Enquanto no primeiro jogo da Intercontinental Pelé bisou frente ao bicampeão europeu, o auge da excelência do melhor jogador brasileiro de todos os tempos estava reservado para a 2.ª mão, na Luz. O próprio elegeu esse jogo, muitos anos depois, como sendo, provavelmente, o melhor da sua carreira. O que consiste num elogio ao Benfica: numa carreira repleta de formidáveis desempenhos, golos, assistências e jogadas inacreditáveis em catadupa, escolher este em particular diz tudo da opinião de Pelé sobre aquele Benfica que defrontou em 1962.
Dizia a crónica ao jogo do jornal "A Bola": "Confessamos, muito honestamente, que não somos capazes de avaliar o que é a equipa do Santos sem Pelé. (…) Esse sr. Edson Arantes do Nascimento que as autoridades não deveriam ter deixado entrar em Portugal. Uma coisa é certa: ele existe, ele está lá e, como aconteceu na Luz, influi em 90% do que a equipa realiza ao ataque. Cinco golos ao Benfica: três marcados por Pelé, em jogadas magistrais, dignas de uma fita de celuloide, e dois forjados por ele, um deles oferecido ao compadre Coutinho como se oferece um fato pronto a vestir…"
Enaltecer os feitos de Pelé, mesmo aqueles ante o Benfica, é um ato de justiça, um louvor mais do que devido a um dos mais extraordinários futebolistas de sempre. Parafraseando Roger Schmidt, "quem ama futebol, ama o Pelé".

E SE…
O impacto de Pelé no triunfo brasileiro do Campeonato do Mundo realizado na Suécia, em 1958, foi extraordinário. E apesar de ser ainda um tempo em que as transferências internacionais pouco faziam parte da agenda noticiosa, não surpreende que o nome de Pelé tenha surgido associado ao interesse de vários clubes. E um em particular remete-nos para o domínio do sonho nostálgico…
O "Mundo Desportivo" lançou a pergunta: "Pelé disse não ao Real Madrid. E ao Benfica?" E avançou a resposta: "O Real Madrid ofereceu a Pelé cerca de 1400 contos. Pelé disse NÃO e declarou (segundo o "L'Équipe") ter também recebido uma vantajosa proposta do Benfica e que só não a aceitou por motivo de a CBD não consentir que os campeões do mundo saiam do Brasil."
O artigo refere que se trataria de "fantasia, com certeza", mas fantasiemos então.
O Benfica era treinado por Otto Glória, brasileiro com longa carreira no seu país e ao qual não terá passado despercebido desde o primeiro momento, mesmo à distância, o enorme talento que despontara no Santos. E o Benfica até estivera em digressão pelo Brasil, inclusive fora vítima de Pelé, um ano antes. Será assim tão descabido que esta hipótese tenha mesmo existido?
É certo que só passados 20 anos foi aprovada, em Assembleia Geral, a utilização de jogadores estrangeiros pela equipa de futebol do Clube. Mas era Pelé. E é crível que Otto Glória, figura central da revitalização do futebol benfiquista a meio da década, tivesse o poder de persuasão suficiente para acelerar as vontades. Por exemplo, usando um dos argumentos de Nélson Rodrigues, o celebérrimo escritor brasileiro, notável cronista de futebol, para justificar o seu regozijo pelo triunfo benfiquista, em 1962, ante o Real Madrid na final da Taça dos Clubes Campeões Europeus: "Qualquer brasileiro já foi português, algum dia."
Com Pelé, quantas vezes mais teria o Benfica conquistado a Europa nos anos 1960? Fantasias… A gloriosa história do Benfica é extraordinária por si só, basta a realidade!
Até sempre, Pelé. Obrigado!"

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