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terça-feira, 12 de setembro de 2023

UM DIA CHAMARAM-LHES LOS CAMBOYANOS

 


"Estamos solos y no damos nada como perdido!’, berrou Luis, o uruguaio. Não, não estavam sós - estavam juntos como irmãos.


Nos finais dos anos 80 as coisas andavam feias para os lados do bairro de Bajo Flores, um dos mais centrais da grande Buenos Aires. Quando falta o dinheiro, raramente o horizonte é brilhante. E faltava dinheiro ao San Lorenzo de Almagro, de tal forma que fora obrigado a abandonar o seu local de nascença, em Boedo, Barrio de Almagro, e transferir-se para o Estádio de Nuevo Gasómetro. O San Lorenzo, que em 1946 fez uma digressão à Península Ibérica de tal forma espetacular que se entreteve a esmagar adversários como se fossem caroços de azeitonas. Começou por destruir o Atlético Aviación (mais tarde Atlético de Madrid), atropelando em seguida a seleção espanhola por 7-5. A imprensa do país vizinho não fazia por menos: «Estes argentinos são de uma classe única, utilizam um estilo de futebol harmonioso e compacto, cada peça funciona matematicamente e no momento oportuno e jogam a bola com tanta habilidade e destreza como nunca vimos até hoje. Futebol arte!». Um bocado assustador para os portugueses que iriam recebê-los na fase final da viagem. O FC Porto foi trucidado por 9-4 e o velho BSB (junção de jogadores do Benfica, Sporting e Belenenses) por 10-4. Foi assim que que o San Lorenzo começou a ganhar fama na Europa e no mundo. Jogando algo que, para os europeus, ainda não era verdadeiramente futebol.
Adiantei-me e já recuo. Falava dos anos 80 e não dos anos 40. Ou seja, quarenta anos mais tarde. O San Lorenzo já não era o San Lorenzo. Era uma amostra triste de um antiga opulência. Estavam sem poder utilizar o estádio, o campo de treinos era ervado e cheio de buracos, não havia água para os duches. É triste a miséria. Mas também é nos momentos da desgraça que há alguém que consegue ir ao fundo da alma e tirar de lá uma mão-cheia de coragem positiva. Esse alguém foi o lateral-direito uruguaio, Luis Malvárez, de nome completo Luis Enrique Malvárez Portillo, nascido em Montevidéu no dia 21 de julho de 1961, e que viera do Danúbio (clube e não rio, como está bem de ver). Certa manhã, ao chegar ao treino, juntou os companheiros e largou um berro próprio de líder: «Somos como los camboyanos, estamos solos y no damos nada por perdido!».
A frase poderia ferir o orgulho dos cambodjanos, mas a verdade é que no Cambodja viviam-se tempos tão complicados com o crescimento do poder dos khmers vermelhos de Pol Pot que não deve ter havido um único habitante do país a escutar as palavras de Luis Henrique. Mas dentro da equipa do San Lorenzo a frase tornou-se uma declaração de guerra à desgraça. Não havia tempo a perder para agarrar o futuro e a atitude dos jogadores mudou radicalmente nos meses que se seguiram. 1981 foi um horror – pela primeira vez o San Lorenzo baixou à segunda divisão. Depois, um grupo de valentes, seguiu o trilho deixado em aberto por Malvárez. Gente desvalorizada pelos desaires agarrou-se ao resto de orgulho que os mantinha firmes como equipa. Hernán Sosa, Jorge Higuaín, Osvaldo Biaín, Enrique Hrabina, Armando Quinteros, Rubén Darío Insúa, Jorge Rinaldi, Heber Bueno, José Raúl Iglesias, Mario Husillos, Ruben Navarro foram nomes rapidamente decorados por adeptos e adversários. Os Camboyanos, como passaram a ser chamados, regressaram na época seguinte à divisão principal e, logo a seguir, foram segundos tendo-se batido bravamente na luta pelo título. Não tinham nada mas desejavam ter tudo – os dirigentes viam-se obrigados a alugar estádios onde pudessem jogar em casa, os equipamentos tinham de durar o maior número de partidas que fosse possível e as camisolas e os calções estavam no fio, os ordenados em atraso acumulavam-se de forma vertiginosa. Mas os cambojanos não viravam a cara à luta.
Em setembro de 1986, sucedeu o impossível. O San Lorenzo deslocou-se ao campo do líder, o Independiente. Ninguém conseguiria apostar um peso furado no triunfo dos Camboyanos. Sobre a relva houve mais combate do que jogo. Luis Malvárez, o uruguaio, soltou novo grito de revolta: «Hoje jogaremos pelo sangue!». A vitória por 1-0 fez nascer a lenda dos que tinham resolvido usar o povo cambojano como exemplo do sofrimento.
Mas as tempestades não passam como se se desenrolassem em copos de água. Nem todos os jogadores do San Lorenzo tinham alma de Camboyanos, nem todos estavam dispostos a ir até às vascas da agonia ao mesmo tempo que não recebiam salários. Muitos foram os que saíram. Não havia forma de criticá-los porque era a sua própria existência que estava em jogo. Os que ficaram foram mais Camboyanos do que nunca. A pele ficava-lhes em campo. A alma enchia-se a cada vitória. «Estamos solos y no damos nada por perdido!». Não, não estavam sós - estavam juntos como irmãos!"

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