«O sistema existe, não lhe posso é provar. E realmente essas situações são corriqueiras, desde os juniores até aos seniores. (…) As pessoas que falavam comigo nessas alturas eram pessoas que apareciam e desapareciam, e todas elas tinham uma bitola consoante a importância do jogo. Muitas das vezes fui contactado e não aceitei, e uma das vezes fui experimentar e vi que realmente funcionava».
Estas declarações pertencem a Jorge Gonçalves, antigo presidente do Sporting. Não foi preciso vasculhar terabytes de e-mails consultados indevidamente para chegar a esta declaração clara como água. Que me lembre, é a única admissão de corrupção ativa alguma vez feita por um presidente de um clube português de grande dimensão. Por um lado, apetece-me elogiar a sinceridade da declaração. Por outro, apetece-me perguntar se está prevista a suspensão do Sporting de todas as provas desportivas. Investigue-se.
Vem a provocação a propósito da mais recente entrevista de Frederico Varandas, ao longo da qual o presidente do Sporting enumera uma série de feitos como se o próprio fosse aquilo a que hoje se chama na gíria de «talento geracional». A expressão é usada para descrever um talento que só aparece uma vez uma geração, uma espécie de cometa que passa pela realidade dos comuns mortais e nos abençoa com a sua presença. A expressão foi cunhada para caracterizar o talento de pessoas como Lionel Messi ou Cristiano Ronaldo, portanto Frederico Varandas não me levará a mal se o colocar numa categoria diferente, ligeiramente abaixo dos verdadeiros talentos que marcam uma geração como nenhum outro.
Não quero ser mal interpretado e tento sempre reconhecer valor a quem o demonstra. O presidente do Sporting tem grande mérito no sucesso que, em conjunto com a sua equipa, voltou a um clube que parecia cronicamente afastado das grandes vitórias. Ninguém lhe tira isso, como ninguém lhe deve tirar os demais progressos que o clube tem feito durante os seus mandatos. Mas, para alguém tão revoltado com páginas negras do futebol português, Frederico Varandas parece-me um pouco inebriado pelas recentes conquistas.
Já aqui elogiei a firmeza do presidente do Sporting em relação ao FC Porto, mas não me parece que seja boa ideia o presidente do Sporting viver excessivamente convencido da sua pureza. A ideia de que Frederico Varandas, por ser mais novo e aparentemente impoluto do que dois ex-presidentes seus rivais, representa um clube moralmente inatacável, não resiste ao embate com a realidade. O exercício é simples. Se Frederico Varandas se sente intitulado a decretar sentenças acerca de crimes por demonstrar, como o fez em relação ao Benfica, o mesmo critério poderia ser usado contra o seu Sporting. Bastaria para isso que, tal como Frederico Varandas, fintássemos o Estado de Direito da forma mais conveniente e tirássemos as nossas próprias conclusões acerca da conduta de um antigo vice-presidente do clube de Frederico Varandas, ou de outros funcionários do clube.
Se isso não for suficiente, podia falar sobre o Euromilhões que permitiu ao Sporting obter uma vantagem económica por via da recompra das VMOCS, vantagem essa que Frederico Varandas considerará devida, mas que eu reservo o direito de considerar moralmente condenável, mesmo que financeiramente lícita, e mais do que capaz de desvirtuar a relação de poder entre clubes rivais. Já agora, também valeria a pena lembrar o acionista do clube, detentor de 9,9 % da SAD do Sporting, que se vê hoje enredado em acusações graves de branqueamento de capitais, numa operação alegadamente tornada possível com a entrada de dezenas milhões de euros na SAD. Apetece perguntar a que expediente recorrerá para defender o Sporting no dia em que um destes problemas, ou outros daí decorrentes, se abater sobre o seu clube.
Daqui se infere uma verdade relativamente prosaica: Frederico Varandas, com quem, pasme-se, não antipatizo, tem pouca autoridade para dar lições de moral a quem quer que seja. Pode e deve pugnar pela ética do seu clube enquanto o representar, mas para isso terá de considerar também um objeto, para além dos artifícios verbais. Chama-se espelho e permite ver o nosso próprio reflexo. Nele, se olharmos com atenção, descobrimos as nossas próprias imperfeições e aprendemos coisas importantes sobre nós.
De resto, por muito assertividade que empregue, as sentenças de Frederico Varandas não transitam em julgado. O presidente do Sporting está no direito de escolher a parte da realidade que lhe interessa. Quem o ouve, está no direito de fazer exatamente a mesma coisa. Nisto, devemos ser francos. Não sairá daqui um país melhor, mas antes o país que temos. Quando este choque acontece, ou seja, quase sempre, a acusação de negacionismo é válida para ambos os lados, mas, em rigor, só um dos participantes nesta troca preside a uma instituição com a dimensão do Sporting.
Refiro-me à dimensão, não porque esta crónica semanal se deva ocupar demasiado com o tamanho dos outros, que empalidece por comparação com o Sport Lisboa e Benfica, mas, porque, em virtude dessa dimensão institucional, se aconselharia uma postura diferente por parte do presidente do Sporting, que, à sua maneira, acaba por ser capturado pela narrativa mais corriqueira do futebol que tantas vezes já criticou.
A sensação é a de que Frederico Varandas aproveitou os ventos favoráveis dentro de campo para uma operação de outra natureza, neste caso uma nova recompra de VMOCs, leia-se, Valores Morais Oportunamente Convertíveis. No entanto, se há coisa que o futebol português nos ensinado, é que todos os heróis acabam por viver tempo suficiente para acabarem como vilões.
O meu clube tem um longo caminho a percorrer, precisamente por se ter deparado e continuar a deparar-se com esses heróis caídos em desgraça. Felizmente, há muitos sócios e adeptos que lhe colocam um espelho à frente, sem receio de confrontar a realidade. Podemos ser muito grandes em muita coisa, mas não devemos ser tímidos a reconhecer os momentos em que fomos pequenos, sem pretensas virtudes morais e sem achar que temos algo a ensinar aos outros. Gosto de pensar que nos preocuparemos sempre mais connosco.
Quanto a Frederico Varandas, talvez não o antecipe, mas é possível que a dívida moral, ao contrário da financeira, acabe por cobrar o seu preço.
Vasco Mendonça, in a Bola
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