Desde o primeiro momento que Mourinho tem claro o que deve ser a cultura encarnada, mas é preciso semeá-la.
Sem saber o futuro, José Mourinho ficou de certo modo preso às declarações de quando treinava o Fenerbahçe e elogiou o plantel do Benfica. É algo que se vira contra o técnico quando reflete sobre as carências encarnadas agora. Mourinho estaria a ser honesto no elogio, mas também falava como um treinador adversário, numa lógica de comunicação que necessitava de valorizar quem tinha pela frente. Um ponto que também tem de ser ponderado na apreciação às palavras do técnico na altura. Mais importante do que disse Mourinho em agosto é aquilo que disse desde que chegou à Luz. Entre outras coisas, afirmou que havia trabalho bem feito por Bruno Lage e a derrota com o Qarabag não a recordou só agora, lembrou-a já na antevisão do segundo jogo, com o Rio Ave: «Perder como perdemos com o Qarabag, obviamente que as pessoas não se identificam com isso.»
Após as eleições, escrevi que o foco virar-se-ia para Mourinho e que seriam necessárias vitórias para a estabilização do clube. Mas o próprio Mourinho é uma espécie de para-raios, com o seu estatuto e o seu modo de comunicar a proteger a relação entre campo e bancada. Será por isso, também, que o treinador se sente legitimado para criticar os seus em público após o fazer em privado.
Mourinho, também antes desse jogo com o Rio Ave: «Ou o Benfica vence ou sai morto!» Indo mais atrás ainda, recuperando o que afirmou sobre o Benfica, está claro o que idealiza numa equipa encarnada. Mourinho viu um Benfica que algumas gerações desconhecem, e nesse capítulo o discurso bate certo com o imaginário do adepto, de um clube tão grande como os maiores do mundo.
É essa ideia que acarreta com ela um nível de exigência, em todos os momentos, nos pequenos palcos da Liga, na Taça e não apenas quando o adversário exige maior concentração pelo seu tamanho. Mourinho sabe o que é ser grande e, por isso, tem de ser figura central em semear uma cultura muito própria num grupo que, visto de fora — e com as limitações que isso tem — parece necessitar de um abanão para desenvolver um nível de performance positivo e constante.
O treinador tem falado sobre a formação com alguma insistência. Como lembrou Rui Costa na campanha, o Benfica é campeão em todos os escalões e, portanto, há quem esteja a crescer no Seixal com aquilo que me parece que Mourinho procura quando pede alma: ADN de campeão.
Dirão alguns que o problema não está aí, que isso é só «bater no peito» e parte da narrativa que Mourinho quer ter. Basear-se-ão no que «joga» o técnico hoje em dia, o que tem sido alvo de discussão nos últimos trabalhos do setubalense. O que me parece que nunca falhou é Mourinho ter-se enganado na identidade dos grupos que teve e alguns dos problemas que já elencou em entrega e concentração foram visíveis com Lage. O Benfica pode estar longe do patamar exibicional desejado, mas a semente competitiva que Mourinho procura fazer crescer será essencial não só para agora, como para um futuro para além da duração do contrato do técnico, mesmo que isso implique que sejam outros a colher o resultado dela.
Luís Pedro Ferreira, in a Bola

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