"Os que já passaram a barreira dos 60, e principalmente aqueles que passaram a dos 70, foram criados (educados) a olharem para o desporto como uma entidade mensurável através de medidas de comprimento, medidas de tempo ou medidas de peso.
Foi provavelmente a partir de 1969, com o milésimo golo de Pelé, que tudo no desporto passou a ser medido e quantificado de modo diferente. Nisso tiveram os mass media o seu papel, nomeadamente em relação à falácia dos recordes.
Para se realçar a queda de um “recorde” os media salientaram que as sete medalhas de ouro de Mark Spitz em Munique (1972) foram destronadas pelas oito de Michael Phelps em Pequim (2008) – variável “J. O.” e variável “ouro”. Os media proclamaram mais um “recorde” batido por Simone Biles com 25 medalhas em detrimento das 23 de Vitaly Scherbo em mundiais de ginástica – variáveis “mundiais” e “ouro, prata e bronze”… Mas se recorrermos às variáveis “J. O.” e “ouro” verificaremos que Scherbo possui seis medalhas de ouro e Biles quatro…
Se a variável for o número de cartões vermelhos no futebol por jogador Vinnie Jones é um recordista: mais cartões na Premier League em 1995/96 e 1996/97; mais cartões na qualificação para o Europeu de 1996. Se a variável passar a ser o número de cartões amarelos Vinnie Jones continua a ser recordista: mais cartões na Liga Inglesa de 1992/93. Com outras variáveis (ano e clube), Roy Keane, do Manchester United, em 2004 possuía o “recorde” dos cartões vermelhos ao serviço de um clube inglês. Mas se se introduzir aqui a variável “tempo”, Vinnie Jones também detém o “recorde” do cartão amarelo mais rápido de sempre na história do futebol aos 3 segundos de jogo. Mudando uma vez mais de variáveis, a mais rápida apresentação de um cartão vermelho num mundial de futebol foi feita ao uruguaio José Batista, expulso aos 55 segundos no jogo contra a Escócia, no México em 1986.
Se os mass media foram buscar as 69 pole positions de Lewis Hamilton para mostrarem que este bateu o “recorde” de Schumacher em Setembro de 2017, também foram buscar o “recorde” de Ayrton Senna em relação a pole positions consecutivas: oito.
Correndo atrás da variável “velocidade”, os media apresentaram-nos o “recorde” de serviço mais rápido no ténis (Samuel Groth, em Busan, na Coreia do Sul, serviu a 263Km/h, em 2012) tal como nos mostraram o “recorde” da velocidade máxima na Fórmula Um (Juan Pablo Montoya, 372,6Km/h, no Circuito de Monza, em 2005). E é também através dos media que ficamos a saber que o turco Hakan Sukur tem o “recorde” do golo mais rápido em mundiais de futebol (aos 11 segundos no jogo de atribuição do terceiro e quarto lugar no mundial de 2002) e que o “recorde” do KO mais rápido do pugilismo – aos 55 segundos de combate – pertence a James Jackson Jeffries e remonta a 1900, sendo secundado por Myke Tyson que em 2000 demorou apenas 58 segundos para atirar ao tapete Julius Francis…
Pinto da Costa, presidente do FC do Porto, ao fazer 80 anos em Dezembro de 2017, é o dirigente com mais títulos de futebol no mundo e o que mais tempo possui à frente de um clube (58 troféus, 35 anos de presidência).
Nesse mesmo ano o uruguaio Sebastián 'Loco' Abreu assinou nesse mesmo mês pelo 26.º clube da sua carreira – o Audax Italiano, da 1ª divisão do Chile –, um novo “recorde” mundial…
Roger Federer era o mais velho de sempre no primeiro lugar do ranking de ténis no início de 2018 a meio ano de completar os 37 anos, ano em que Cristiano Ronaldo alcançou 100 golos nas provas de clubes da UEFA, mais jogos em fases finais dos Euros (21) e melhor marcador de sempre de todas as competições da UEFA (132 golos)…
Na 1ª Taça da Liga das Nações, em 2019, Rui Patrício atingiu as 81 internacionalizações na baliza da selecção nacional à frente de Vítor Baía (80) e Ricardo (70): mais um “recorde” glorificado pelos mass media.
Verificamos assim que a falácia dos recordes é uma constante nos mass media, pois bastará somente escolher os parâmetros, uma ou outra variável, e poderemos obter “recordes” de todo e qualquer feitio: o “recorde” de espectadores, de países participantes num evento, de encontros vitoriosos consecutivos, do participante mais velho ou mais novo, do maior número de minutos imbatível e até o “recorde” do primeiro homem com três medalhas num só dia (o norte-americano Caeleb Dressel nos mundiais de natação de 2017, em Budapeste).
Manuel Sérgio já disse por aqui (28.08.2015, artigo 101) que “raro é que a retórica dos críticos e comentaristas não atraiçoe a verdade vivida, hipervalorizando o tratamento quantitativo (que pode ser medido, testado, verificado, experimentado) e resistindo ao tratamento qualitativo, onde a experiência e a compreensão predominam. É, por natureza, uma arte presunçosa, intrometida e falseadora confundir sempre o mais relevante com o mais mensurável.”
Vejamos dois exemplos recentes!
O «Record» de 25.10.2019, na página 43 apresenta o título: “Erling Haland supera as marcas de CR7 e Messi”. Recorrendo aos jogos da Liga dos Campeões, Haland em apenas 3 jogos chegou aos 6 golos… Messi demorou 17 jogos e CR7 precisou de 32. Repare-se como se conseguem manobrar os números… Mas vai-se ainda mais longe quando se diz que Haland em 10 remates marcou esses 6 golos tendo 60% de eficácia. Sem dúvida que começamos a assistir à construção de uma nova vedeta por parte dos media.
Três dias depois, na página 48, o mesmo jornal titula: “Roger Federer a meia dúzia de Connors”. Federer tem 103 títulos singulares, Connors 109. Salienta-se neste artigo que Federer tem 4 títulos este ano (já nova variável) tal como Djokovic, Nadal e Medvedev embora Dominic Thiem tenha 5. A seguir destaca-se que Federer “é ainda o primeiro tenista a chegar a pelo menos dez títulos em dois torneios de superfícies diferentes. Nadal, por exemplo, ganhou dez ou mais títulos em três torneios diferentes (Roland Garros, Monte Carlo e Barcelona), mas todos em terra batida.” Atente-se mais uma vez na mudança de variáveis… Consoante o que se pretende realçar, assim se escolhem os parâmetros. Tudo é quantificável no desporto.
Tudo pode ser apresentado como “recorde” desde que se escolham as variáveis que interessam para tal… A quantificação da qualidade contribui, segundo Roland Barthes (2007, “Mitologias”. Lisboa: Edições 70.), para a criação do mito: quando se reduz toda a qualidade a uma quantidade “o mito faz uma economia de inteligência: ele compreende o real com menos custo”. E quando o real possui um custo menor nem sequer damos conta que estamos a ser manipulados…"
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