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sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

BENFICA, UM FERRARI DE DUAS VELOCIDADES



 "Caos. Uma palavra que pode ter vários significados. No dicionário, “desordem” e “confusão” são alguns do sinónimos, numa conotação que pode soar negativa. Já num tom mais enciclopédico, podemos ver uma estreita ligação à Teoria dos Sistemas. Desengane-se quem pense que isto é mais uma metáfora, qual rodeio, para tornar lírico um mero artigo de opinião. De facto, é necessário entender algumas das características destes sistemas para se desmistificar aquilo que todos procuram saber desde meados do reinado de Lage até aos dias de Jesus: qual é, de facto, o grande problema do Benfica?

O mistério que paira sobre o Benfica, desde os tempos de Bruno Lage, parece estar por desvendar. No meio de todas as razões que se podem apontar numa simples conversa de café, certamente que o fator psicológico e a dita “estrutura” são dois deles, mas a raíz poderá estar precisamente no relvado. Recentemente, no Canal 11, Nuno Presume apontou “a procura excessiva do corredor central” como um dos problemas do Benfica. A crítica chamou-me a atenção, pois raramente se identificou este “vício” em praça pública como sendo um defeito das águias.
Desde que Bruno Lage assumiu o comando, que o Benfica passou a sobre-explorar o jogo interior, talvez levado pelas tendências contemporâneas do mundo do futebol. Quando o técnico setubalense assumiu as rédeas da equipa, talvez a maior chave para o sucesso tenha sido a introdução de João Félix nas entrelinhas do corredor central, contrastando com as combinações exteriores do 4-3-3 que atirou Rui Vitória para fora da Luz – quem não se lembra dos “três anões” Grimaldo, Zivkovic e Cervi a desequilibrarem pela asa esquerda? Nessa altura, o Benfica passou a jogar mais por dentro, e a novidade transformou-se em sucesso. Terminada a época, o conto de fadas parecia ter tudo para continuar.
Decorria já 2019/20 quando Sérgio Conceição deixou a nu as fragilidades do adversário. O corredor central, que tinha catapultado o Benfica para o título na época anterior, foi selado a sete chaves, e Lage acabaria por conhecer o sabor da derrota no campeonato, precisamente na casa do rival. A partir daí, várias equipas montaram a sua estratégia defensiva tendo por base a ocupação desse espaço. À medida que o tempo ia passando, o Benfica foi-se ressentindo da falta de soluções. Em momentos de desespero, Lage até deu sinal à equipa para que cruzasse – ou, melhor dizendo, despejasse – bolas para área, sem nexo, sem timing e, arriscaria eu, sem treinos que tivessem servido de ensaio a tal aberração. O seu Benfica foi, por isso, desvanecendo aos poucos, viciado no seu próprio veneno que, outrora, havia sido a cura.

“Temos inteligência suficiente para perceber que o jogo está sempre em evolução. Se pararmos no tempo, ficamos iguais aos outros e nós não queremos ser iguais aos outros, queremos ser diferenciados”. É assim, também, que o novo treinador do Sporting Clube de Braga vai encarar a época 2020/21, em busca de construir uma “equipa completa”, que não se baseia num sistema de jogo e em que “a identidade é a flexibilidade“.
Carlos Carvalhal in Tribuna Expresso

As equipas de futebol não são nada mais, nada menos, que sistemas caóticos determinísticos, pois apresentam padrões de (inter)ação que se repetem no tempo, denominados invariantes ou regularidades (Oliveira, 2004). Isto significa que, no meio da desordem (caos), as equipas devem tentar impor (a sua) ordem, procurando jogar dentro dos seus macro-referenciais. Simultaneamente, é fundamental respeitar o caráter caótico do jogo e as situações que deste emergem e, em função das circunstâncias, tomar uma decisão de entre várias possíveis, sendo que esta modelação se dá através do processo de treino. Tal como referi num artigo recente, procurar atingir a máxima variabilidade na máxima redundância.
Quem nunca se debateu sobre a melhor forma de passar a sua ideia de jogo do papel para a prática? Existem jogadas totalmente mecânicas, sub-dinâmicas predefinidas e outros métodos que eu possa não estar agora a vislumbrar. Contudo, permitam-me discordar da vossa visão, se esse for o caso, mas estão a fazer do futebol um jogo de Tétris. Quadrado. Matemático. Exato. O desrespeito pelo caos é por demais evidente, e reduzir uma infinidade de caminhos para se jogar apenas de determinada forma é o primeiro passo para o abismo. Para fazer face às adversidades, é fundamental que, cada vez mais, o nosso jogar englobe vários tipos de jogares!
Disse recentemente o Brian Laudrup (um dos autores do Lateral), que “não é crime fazer cruzamentos”. Ora, se olharmos para a declaração de Carvalhal, que define a identidade do Braga como sendo a flexibilidade (e eu juro que, numa das recentes entrevistas, ele até usou mesmo o termo “variabilidade”!), podemos perceber que o grande problema tático do Benfica passa por não conseguir arranjar outras formas de desequilíbrio para além do jogo interior. No fundo, é tudo menos flexível, variável.

"Não há maior sinal de loucura do que fazer uma coisa repetidamente e esperar a cada vez um resultado diferente."
Einstein

De facto, este fetiche tem repercussões a vários níveis. Com as organizações defensivas cada vez mais fortes nos dias que correm, o preço por metro quadrado ficou mais caro. O Vitória SC que vimos neste último jogo para a Taça da Liga foi uma autêntica muralha – ou, se preferirem, um castelo – que o Benfica nunca conseguiu superar em jogo corrido. O que não se entende é a insistência em jogar pelo meio quando este se encontra tão povoado. Parece que o jogo interior, com passes entre linhas, apoios frontais e as dinâmicas do terceiro homem, é o caminho único para a baliza. Mesmo quando a bola vai fora, todos os caminhos vão dar… ao meio. É como se o Benfica pudesse abrir várias portas, mas o treino só lhes dá uma chave, e isto tem impacto no subconsciente dos jogadores e, consequentemente, nas decisões que estes tomam em jogo.
Apesar do vício ter iniciado com Lage, é óbvio que Jorge Jesus não está isento de culpas. Como desculpa, tem o facto de, nos tempos em que vivemos, os microciclos se reduzirem quase que exclusivamente a treinos de recuperação, não dando grande margem para momentos aquisitivos e um acrescentar/potenciar da forma de jogar. No entanto, desde o início da época, o técnico campeão em título da Libertadores ainda não foi capaz de aportar ao jogo do Benfica outro tipo de soluções, de maneira a aumentar essa tal variabilidade de jogo que se veio a “afunilar” desde os tempos de Lage. O Benfica continua a ter os extremos por dentro (ou a virem de fora para dentro), os avançados por dentro, os laterais geralmente por fora (mas que raramente cruzam) e, mesmos os passes dos médios que tentam fazer a equipa chegar à frente, acabam por ser tentativas de rasgar o bloco do opositor, sendo Taarabt o caso mais paradgimático, ainda que com salpicos de qualidade. Quando a oportunidade para furar não surge, o Benfica faz a bola circular… e circular… e circular… Os espaços vão-se fechando, o ritmo do jogo baixa de primeira para ponto morto e, não raras vezes, chega a fazer marcha atrás. No final, a intenção mantém-se: tentar tabelas em verdadeiras cabines telefónicas, onde o espaço não existe. Não me ocorre outra palavra para descrever o atual futebol do Benfica que não seja “aborrecido”. Se nos lembrarmos que, em tempos, Jorge Jesus disse que este Benfica era um Ferrari, então parece que o Ferrari só alterna entre duas mudanças: o lento e o muito lento (e, nalguns dos momentos em que Gabriel pega na bola, chega mesmo a ficar parado).

"O Todo é maior que a soma das partes."
Aristóteles

Outro dos pecados de Jesus é a forma como este ignora aquilo que os jogadores lhe podem dar – e, pior ainda, aquilo que eles não lhe podem dar! Pedir a Otamendi e a Vertonghen para estarem constantemente numa linha subida é, no mínimo, um sinal de atrevimento, já que baixar o bloco não parece sequer ser opção. Mais irreal é tentar que Weigl, Samaris ou Gabriel “comam” metros como faziam Matic ou Fejsa – que erro tremendo foi emprestar Florentino! – quando esse equilíbrio podia perfeitamente ser garantido num meio-campo a três, onde até Taarabt e Pizzi se sentiriam mais confortáveis para viverem no risco em zonas de criação, pois teriam dois “guarda-costas” a atuarem logo após a perda. Às vezes, o Todo pode ser menor que a soma das partes, pois a complexidade inerente ao futebol tem o condão de fazer de André Almeida um lateral direito muito bom para o nosso campeonato quando a sua equipa está bem, como, ao invés, banalizarem um Darwin ou apagarem um Waldschmidt quando o coletivo se mostra enleado numa desinspiração profunda.
Do ponto de vista individual, também existem várias lacunas. Além da qualidade técnica duvidosa de Gilberto e Nuno Tavares, Darwin Núñez só se sente como peixe na água quando é solicitado no espaço, pois erra as ações mais básicas – passe e receção – sempre que recebe nas apertadas entre linhas. A má definição de Rafa nos momentos de finalização, um retraído Cebolinha e um Waldschmidt cada vez mais desorientado também agravam a crise das águias. E, se pensarmos mais um pouco, exemplos não faltarão.
No meio de tantos palpites, talvez a resolução do grande problema tático do Benfica possa vir a refletir-se positivamente noutros aspetos. Prioritário, neste momento, é procurar outras formas de agredir a defesa contrária para além do jogo interior, que só permite a este Ferrari (ainda que com várias peças de marcas mais humildes) andar a duas velocidades. Porque não tirar partido dos espaços livres para “soltar” Rafa ou Darwin, destravando este Ferrari e conferindo-lhe mudanças com mais adrenalina? Poderá o uruguaio transformar cruzamentos em golos se for mais vezes solicitado pelo ar, assim como Seferovic? Será que Nuno Tavares, Diogo Gonçalves, Cebolinha e Pedrinho conseguiriam aumentar o seu número pessoal de assistências se o Benfica criasse mais situações de desequilíbrio pelos corredores laterais? Quando foi a última vez em que o Benfica contra-atacou com sucesso? Quem tem a ousadia de ir no um para um? São questões para as quais Jesus ainda não forjou qualquer resposta.
Se o seu modelo contemplar “vários tipos de jogares”, certamente que os seus intérpretes vão conseguir manifestar o que têm de melhor, alcançando assim a simbiose perfeita entre a ideia do treinador e a potenciação do talento dos jogadores. Neste momento, o Benfica continua à procura duma saída para este labirinto. Mas é melhor Jesus acelerar, ou este Ferrari corre sérios riscos de ter novo acidente."

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