"Rui Costa não tem de perceber de futebol para tomar as melhores decisões, o que não tem acontecido ao longo desta temporada, desde logo ao deixar Schmidt a ‘arder’ sozinho
Há uma ideia a que volto de tempos a tempos. Por mais assistências assinadas, golos marcados, jogos realizados, campeonatos em que tenha estado ou internacionalizações somadas, enfim, por melhor que tenha sido, um ex-jogador não será automaticamente um bom treinador ou sequer um razoável futuro dirigente. É para mim o paradigma e até que me apresentem um novo, indisputável, continuarei a acreditar neste.
Não é que não se assista, de vez em quando, ao nascimento de grandes técnicos a partir de verdadeiros craques, porém essa não é uma relação de causa-efeito. Diria que se um determinado futebolista já mostra essa apetência em campo, com uma inata capacidade de leitura e, ao mesmo tempo, uma curiosidade que depois terá de saciar com vários porquês junto dos seus treinadores e nos cursos existentes para o efeito, estará muito mais próximo de consegui-lo. Para os restantes, é como fazer jogging e achar que se está preparado para jogar futebol com os amigos. São músculos diferentes, constantes alterações da frequência cardíaca, por isso esqueçam se estiverem a pensar nisso.
Outra premissa importante é que não há ninguém omnisciente, alguém que preencha todos os requisitos. Isso é válido para todos no futebol, seja um jogador, um treinador ou um dirigente e, para fora deste, na nossa vida profissional. Todos somos compostos por várias camadas, com o registo de competências e lacunas, e felizmente percebemos a certa altura da nossa existência enquanto humanidade que funcionamos melhor em equipa. Mesmo que a última decisão seja de um líder.
Vejamos o caso do Benfica, de Rui Costa e Roger Schmidt. O alemão somou no último fim de semana mais três pontos, agora com uma exibição sólida num terreno que não tem sido fácil para ninguém, e foi premiado com nova onda de insatisfação e mais objetos atirados na sua direção - algo que da primeira vez já tinha sido vergonhoso o suficiente para que se pudesse sequer pensar numa segunda. O presidente das águias só reagiu ao início da noite do dia seguinte na televisão do clube e nem por uma única vez proferiu o nome do técnico. O que disse ou o tom usado teve zero impacto comunicacional. E emocional. Foi claramente insuficiente. Rui Costa voltou a não estar lá para Schmidt, da mesma forma que o seu antecessor não esteve para os técnicos anteriores.
Um clube funcionará sempre melhor quanto mais competente a sua organização for nas várias áreas, desde a liderança ao scouting, passando pela academia de formação e pelos nutricionistas, médicos, fisioterapeutas, tratadores de relva, técnicos de equipamentos, contabilistas, advogados e por aí fora. Esse, por exemplo, foi o paradigma que Ralf Rangnick, atual selecionador austríaco, hoje falado para o Bayern, trouxe para a Red Bull e que está certamente na origem do sucesso que a empresa tem tido no desporto. É, por isso, que quando se trata do futebol ou de qualquer outra modalidade, o sucesso será sempre mais facilmente atingível quando a visão e as práticas tiverem um objetivo comum.
A ideia mata o provincianismo instalado. Uma direção não deve ser um grupo de amigos, mas sim formada por profissionais competentes nas suas áreas e com valências complementares. Tal como uma equipa técnica não pode reunir apenas velhos conhecidos, todos têm de acrescentar algo.
Quando se aborda a questão do mercado de transferências, para mim essencial na avaliação de Schmidt nesta segunda temporada, há duas ideias que não podem entrar em conflito: a política do clube e a ideia de jogo. Se um emblema tem de contratar para maturar e vender, irá naturalmente à procura de talento rentável, que pode não ser aquele mais enquadrável no modelo. Se não o for, fica desde logo com menor potencial de rentabilização. Enzo Fernández funcionou porque tinha as características certas para o que o técnico pretendia. Ou seja, mais do que comprar por comprar, o Benfica terá sempre de ser mais seletivo para encontrar o melhor dos dois mundos.
Depois, um clube não pode ficar à deriva quando um alvo falha. Não se passa de Kerkez para Renan Lodi e se tropeça em Jurásek, para a seguir se adaptar Morato, emprestar o checo e ir buscar Carreras, quando, por fim, acaba aí a jogar Aursnes. Onde entra aqui o scouting, a estrutura do futebol e o próprio presidente?
Ao contrário do que os adeptos pensam e do que o próprio entende sobre o que estes devem pensar de si, Rui Costa não tem de perceber de futebol. Tem, sim, de tomar as decisões certas. Rodear-se de uma equipa que o ajude a fazê-lo, a fim de que dê sempre os tiros mais acertados. Se o treinador falhou, cabe-lhe perceber porquê. Se as contratações não resultaram também. Se há uma onda de ruído a crescer à volta da equipa meses depois da festa no Marquês necessita combatê-la, para que esta tenha a tranquilidade necessária para jogar na sua plenitude. Se não sabe o que dizer, deve procurar aconselhar-se. Hoje, a comunicação é tudo. Ou quase.
O que tem acontecido à volta de Schmidt esta época é intolerável, sejam ou não as críticas justas. E só atingiu este ponto porque nada tem sido feito. O incêndio continua ativo e não há quem pegue no extintor. E isso, para mim, é falta de liderança.
Rui Costa deixou que a sua grande aposta fosse ardendo sem ter ninguém óbvio para o substituir. E basta olhar para os nomes até aqui sussurrados para percebê-lo. Qualquer decisão que agora tomar, daqui a quatro jogos, como parece querer fazer, será sempre má. Tão má, que o mal menor será o alemão, em carne viva, continuar. Porque a multidão só se calará, talvez, com uma impensável nova renovação.
É que há algo que todos se parecem estar a esquecer na Luz. Roger Schmidt não só é um nome conhecido - basta olhar para o que pensam dele lá fora -, como quem vier para lhe suceder já naturalmente saberá também com o que pode contar por parte desta direção de Rui Costa."