quarta-feira, 23 de abril de 2014

JORGE JESUS E LUÍS FILIPE VIEIRA : OS CONSTRUTORES DO SUCESSO

1. Há mais de 40 anos, encetei uma análise epistemológica do desporto, que me levou, desenhando eu tremulamente as palavras, pela consciência dos meus limites, ao seio mesmo das ciências hermenêutico-humanas. No âmbito do futebol, saudaram os meus primeiros passos, nesta avantura, o treinador José Maria Pedroto, um homem de exemplar isenção e competência, para julgar as coisas do futebol (ele entendeu, antes de mais ninguém, o meu conceito de ciência, no desporto), e o doutor José Mourinho, para mim, no meu modesto entender, um treinador com currículo incomparável. Embora o desagrado que a minha tese provocou (desagrado inseparável de quem ousa afastar-se de caprichos e obstinações passadistas) posso adiantar que, de quando em vez, sou visitado por alguns treinadores de futebol que me questionam, em busca dos conceitos, puramente teóricos, que venho apresentando, ano após ano, e que alguns (não me refiro aos treinadores de futebol) consideram, no seu pleníssimo direito, uma enfiada de equívocos...

Há sete anos, o engenheiro Cabral Ferreira, presidente do C. F. “Os Belenenses”, dobrou-se sobre a mesa onde o Homero Serpa e eu almoçávamos, num dos restaurantes do Estádio do Restelo, para nos confidenciar: “O nosso treinador, o Jorge Jesus, gostava muito de almoçar e conversar convosco”. Dissemos à uma: “Ele que venha, que o prazer é nosso também”. E o Jorge Jesus veio mesmo e começou assim uma amizade que só a morte perturbou, ao roubar-nos a companhia do nosso querido Homero. No entanto, ela (a amizade) continua incólume, o que significa que, nunca mais, de então até hoje, deixei de cavaquear com o Jorge Jesus e com ele abordar temas que chegam a transformar-se num verdadeiro trabalho interdisciplinar. Trabalho interdisciplinar? Sim, porque o Jorge Jesus é, para mim, um especialista numa área do conhecimento, chamada Desporto. E eu, levado a reboque pelas necessidades da Escola onde trabalhava, porque me deitei ao estudo, que ainda hoje prossegue, da epistemologia da motricidade humana.
2. Quando, nos finais da época desportiva passada (2012/13) o Jorge Jesus e a sua equipa sofreram traumatizantes derrotas, ainda não esquecidas e garganteadas por muitos como o fim da sua carreira de treinador de reconhecidos méritos – sem qualquer reação dogmática ou autoritarismo moral, atrevi-me a dizer-lhe: “Querido amigo, em qualquer derrota, há culpas do derrotado. Descubra as suas, neste momento difícil, já que o sei um homem inteligente. E, depois, recomece. Da sua autocrítica e do muito que sabe de futebol e do muito que sofreu, o meu amigo vai ser um treinador diferente... para melhor! Digo mesmo: dos grandes treinadores que a vida me deu a conhecer. Mas não pode estar só, o Benfica todo tem de lançar-se ao combate diário de extirpação dos seus (dele, Benfica) próprios defeitos, visando transformar-se em pilar ou cúmplice do seu saber e da sua experiência, enriquecida pelo Calvário que acaba de atravessar”. E repisei a ideia que me bailava no cérebro: “E do novo Jorge Jesus e do novo Benfica, em rigorosa e solidária colaboração, pode nascer o próximo campeão nacional”. É preciso um obstáculo novo, para o surgimento de um saber novo. Como cantava o poeta: “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor”. Era por isso fácil, para um estudioso como eu e conhecendo o Jorge Jesus, com a proximidade que nos une, concluir com um mínimo de certeza que o futebol benfiquista podia renascer das cinzas, na época de 2013/14.
O recurso económico básico (se bem entendo o que se diz, entre os economistas e sociólogos de melhor cultura) não é tanto o capital, ou o trabalho, ou os recursos naturais, mas o conhecimento. Poderá dizer-se o mesmo do Desporto. No Homo Ludens, um livro que li, no INEF, em 1968, Johan Huizinga escreveu: “O jogo é muito mais do que um mero fenómeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Vai além dos limites das atividades puramente físicas e biológicas. Tem uma função significante, tem um sentido”. O ser humano precisa do jogo, para criar um outro mundo onde há poesia e sonho e ritual e mito. Para além da ciência da história e da filosofia da história, o jogo diz-nos que há uma teologia da história, com deuses, gotejando suor igual ao nosso e de forte e generoso sangue, capazes de uma humanidade nova. Só que, em alta competição, nada se consegue, sem a companhia de amigos fraternos, que estão criticamente ao nosso lado, em todos os momentos. Criticamente? Sim, porque dando tudo muito exigem de nós. Nas Sete Cartas a um Jovem Filósofo, Agostinho da Silva questiona o destinatário das suas cartas: “Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. Você há-de dar tudo o que puder e mesmo, e sobretudo, o que não puder, porque só há homem, quando se faz o impossível; o possível todos os bichos fazem. Quando você saltar e saltar bem, eu direi sempre: agora mais alto. Que me importa que você caia. O que é preciso é que você se levante. Os fracos vieram só para cair, mas os fortes vieram para esse tremendo exercício: cair e levantar-se, sorrindo”.
3. Muitas vezes, quando critico o meu amigo Jorge Jesus, fico na dúvida se acentuo os seus defeitos (todos temos defeitos), se não sei ver as suas qualidades de um genuíno “fora-de-série”. É que o atual treinador do Benfica, se bem que de escassa sensibilidade literária, tem o talento criador e devinatório de um extraordinário treinador do futebol altamente competitivo. Tem erros? Mas não é a vida científica uma série de retificações? A História das Ciências é uma sucessão de verdades que se desmentem umas às outras. Mas uma sã disciplina mental distingue se há, ou não, progresso, no caminho que se percorre. Ninguém nasce sábio. Para tanto, houve necessidade de muita aprendizagem. Ora, o “curriculum vitae” de Jorge Jesus revela-nos um “agente do futebol” sapiente, de boa inteligência crítica e apaixonado pela sua profissão. Jorge Jesus, no que ao futebol diz respeito, é um sábio e Luís Filipe Vieira, na esperança do retorno dos dias gloriosos doutros tempos, voltou a confiar-lhe, no início da época de 2013/14, a equipa principal de futebol do Benfica, tomando uma decisão que valeu ao seu Clube a implantação de uma nova ordem, com repercussões no Benfica todo. Luís Filipe Vieira, face a situações que não admitiam adiamento, dentro do departamento de futebol, tomou uma decisão que imediatamente mereceu a minha admiração sincera: não afastar do Benfica o treinador Jorge Jesus, precisamente numa altura em que parecia insanidade radical não dispensar os seus serviços. Já observei e estudei o treino de vários treinadores de futebol; tenho por mim horas e horas de lições sobre treino desportivo, que o Dr. Monge da Silva fez o favor de oferecer-me; não cesso de documentar-me sobre esta problemática – julgo poder adiantar que os treinos do Jorge Jesus são modelares e que a sua leitura de jogo é a de um especialista de notável maturidade. Aliás, sobre este treinador, ainda não foi dita a última palavra. De acordo com um estudo da UEFA, o Benfica é o clube europeu, com maior percentagem de adeptos, no seu país. Nada mais, nada menos do que 47 por cento. O Benfica tem, hoje, uma direção sagaz, corajosa, que soube elevar-se sobre inesquecíveis momentos de infortúnio. E tem ainda Jorge Jesus (como elemento fundamental, neste processo) e os seus adjuntos e um grupo de jogadores, que acreditam no seu treinador e se distinguem pela valia técnica, pelo pundonor, pela grandeza de ânimo (como o provaram na segunda mão da meia final da Taça de Portugal, de há poucos dias atrás). O Benfica tem dirigentes, treinadores e jogadores... à Benfica! Falta, agora, conservar o que se fez. Como? Salvo melhor opinião, reorganizando o que foi organizado, no início da época. Diz o Peter Drucker, na Sociedade Pós-Capitalista que “a sociedade, a comunidade e a família são, todas, instituições conservadoras. Tentam manter a estabilidade e evitar ou, pelo menos, diminuir a diferença. Mas a organização da sociedade pós-capitalista é desestabilizadora. Porque a sua função é pôr o conhecimento a trabalhar (…), deve ser organizada para a mudança constante” (p. 69). O Benfica poderá voltar a ser um sério candidato a campeão nacional de futebol de 2014/15, se revisitar a organização do seu departamento de futebol e repensá-la e transformá-la, no que nela houver necessidade de transformação. Mas com Jorge Jesus e Luís Filipe Vieira, os construtores do sucesso que é o hodierno futebol benfiquista. Quem não entendeu o Passado não sabe construir o Futuro. Nenhuma instituição tem qualquer significado, se a sua vida não for uma luta constante contra a rotina, contra o absentismo, contra a inércia. Eu disse constante, ou seja, de todos os dias! Como o faz, neste momento, Jorge Jesus...
Manuel Sérgio é Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

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