terça-feira, 31 de março de 2020

E DEPOIS?


Esta chamada indústria também se pôs muito a jeito, ignorando sempre as crises cíclicas para as quais se achava imunizada

1. Não há 'bola', o que é bem diferente de não haver A Bola. Esta continua a acompanhar-me, diariamente, desde Fevereiro de 1995 e, antes, durante muitos anos, três ou quatro vezes por semana. Nesta rarefacção de inexistência de 'bola', bem compreendo a direcção e os jornalistas e os aplaudo pelo modo como têm sabido enfrentar esta inédita situação. Eu próprio, neste cantinho semanal que me é proporcionado, passei a deparar com a síndrome da angústia do tema ou temas a tratar. Todavia, também vejo estes tempos de bola adormecida - nem sempre bela adormecida - como uma oportunidade para reflectir sobre assuntos que, antes, eram sugados pela maior predominância actualista dos jogos e dos golos. Estamos, pois, numa espécie de defeso impositivo, diferente do defeso de Verão, onde sempre há (havia) o incomparável Tour de França que, este ano, até teria sido acompanhado pelos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Pressinto que vamos assistir, no próximo futuro, a uma revolução no futebol mundial e, por tabela, no futebol nacional, em razão de um vírus pandémico e de uma economia global ferida em alguns dos seus fundamentos e alicerces. E se, no momento em que escrevo, há uma indisfarçável dificuldade em ver com clareza o fim do roteiro sanitário de combate ao vírus, o que se passa na economia e no plano social é de todo incalculável e jamais previsto nesta magnitude e nesta escala planetária.
Sendo assim, também todos os parâmetros nos quais se tem baseado a actividade futebolística estão a sofrer um abalo tsunâmico, de que ainda estamos longe de alcançar todas as consequências. A única certeza que podemos prever é que nada ficará como dantes. O que vai, quando vai e como vai acontecer não se pode garantir.
Em boa verdade, esta chamada indústria também se pôs muito a jeito, ignorando sempre as crises cíclicas para as quais se achava imunizada, não cuidando de encurtar diferenças profundas entre clubes num mesmo país e entre clubes em competições internacionais, promovendo um ambiente de um futebol sinónimo de riqueza, de ricos e de ricaços, ignorando que a larga maioria dos seus players estiveram sempre na margem da subsistência, consentindo que os custos de intermediação fossem uma forma de saque e do domínio consentido sobre a rentabilidade futura dos clubes, deixando-se enlevar por uma espiral de custos salariais suportados por uma bolha de publicidade enganosa, promovendo o excesso do número de jogos e competições inventadas, e fechando os olhos a formas ínvias de negócios designadamente em modo off shore.

2. O futebol oscila entre tudo inflacionado e tudo mendigado. Entre a exportação selectiva do produto e a sua importação aos magotes. Entre protegidos e protectores, e esquecidos e tutelados. Onde aparentemente tudo é igual, mas sempre se cuida de haver algo que é mais igual que o resto. Onde o fascínio da árvore das patacas frondosa e imponente anula ou dificulta a visão da floresta de todos as árvores grandes e pequenas.
Na grande maioria dos clubes, o equilíbrio só se vinha alcançado por via de receitas extraordinárias (designadamente transferências), pelo inchamento das receitas resultantes de direitos televisivos mal distribuídos e de outros proveitos de natureza comercial ou publicitária, pelo endividamento que mais não é que a fuga para a frente que outros terá de pagar, ou, em certos casos, pela alteração da estrutura societária, pelo comprometimento do futuro em razão do presente, pouco se cuidou da parcimónia e sustentabilidade da despesa. Assim se inverteu a lógica racional de um (qualquer) negócio: em vez de uma melhor e mais racional despesa presente e futura para não se estar tão dependente de receita contingente, preferiu-se desta para continuar a alimentar custos que não deixaram de subir. Por outros palavras: em vez de gastar em função do rigor da certeza, optou-se por partir da incerteza para 'falsificar' a despesa.
Muitas perguntas se põem neste tempo tão imprevisível. Como irão evoluir as receitas televisivas, por sua vez, financiadas por publicidade e marketing, por sua vez, sujeitas drasticamente a uma redução da produção de bens e serviços? O que vai acontecer ao 'mercado do futebol' com valores de transferências e montantes das cláusulas de rescisão, que agora se vê tão claramente como desajustados e provindos de um mundo à parte? Este ponto é de grande importância para os clubes portugueses que têm feito de alienação de 'activos' a principal fonte de um instável equilíbrio, sabendo-se agora que, além do efeito temporário da recessão económica, estarão feridas estruturalmente as possibilidades de negócios como o de João Félix ou até Bruno Fernandes, recordes dos seus clubes que jamais serão batidos. Como vai ser reduzida a lógica de intermediação que atingiu percentagens elevadas a montantes injustificados? Como vai a ainda rica UEFA conciliar a gulosa Champions de uns muito poucos com um novo paradigma mais racional e justo? Como vão as federações e ligas compatibilizar todos estes riscos em novos formatos que asseguram uma mais justa competitividade entre equipas? Como vão os clubes encontrar receitas alternativas para compensar as que vão desaparecer a previsível diminuição, ainda que temporária, de receitas de bilhética e de lugares de época nos estádios)? O que vai acontecer a clubes assediados por capitalismo endinheirados de ocasião, que prometem o paraíso? E há muitas outras perguntas, ainda sem resposta...

3. Volto à possibilidade ou não de se poderem finalizar as competições nacionais. É quase um dado adquirido que não haverá recomeço desta época. Mas, tenho lido que, pelo menos, se coloca a hipótese de a concluir com os estádios vazios. Já nesta coluna falei com isso é a negação do desporto. E não deixa de ser irónico que 'jogo à porta fechada', que era até agora considerado uma punição disciplinar, se pudesse transformar para 80 jogos (os que falta fazer na Liga) numa solução. A ironia do paradoxo...
No imediato prazo, há um ponto que se coloca. É o relativo aos salários de todos os que trabalham nas sociedades desportivas (e não apenas dos jogadores e técnicos). Com duas abordagens evidentemente distintas. Começando pela dos clubes cuja médica salarial é baixa (a maioria), e que poderão entrar rapidamente em incumprimento, importa salvaguardar na aprovada legislação sobre lay-off a sua elegibilidade nos termos gerais, ou seja a de uma redução de 1/3 do salário durante a forçada inactividade e de financiamento de 70% dos outros 2/3 pela Segurança Social (até ao limite de 3 vezes o salário mínimo). Quanto aos (poucos) clubes com salários elevados ou muito elevados, agora sem jogos, sem actividade, com quebra de receitas, parece óbvio que se deve aplicar a mesma legislação (à data em que escrevo, ainda não são conhecidos os decretos), obviamente com um encargo bastante mais elevado das SAD, por que o limite atrás citado pouco compensa a média salarial dos jogadores. Assim haveria a redução temporária salatial de 1/3, nos meses de obrigatória inactividade. Não vale a pena inventar ou tentar encontrar outros caminhos quando a lei geral aí está. Nunca se poderá justificar que a inactividade implique a redução de 1/3 nos trabalhadores em geral e que, mais uma vez, os futebolistas dela estivessem isentos. Além de que há futebolistas que ganham mais num mês do que muita gente em grande parte da sua carreira.

Contraluz
- Exemplar: Os quatro mais poderosos e abastados clubes da Bundesliga (Bayern, Borussia Dortmund, Leipzig e Leverkusen) vão ajudar outros clubes da mesma competição. Não que seja por lá inédito, pois, há anos, até o grande clube de Munique ajudou o seu principal rival de Dortmund a sair de uma falência anunciada. Alguém imagina isto noutros ligas?
- Comparação: O Papa Francisco, no meio da Praça de São Pedro completamente vazia, a falar ao mundo, numa tão expressiva e comovente alegoria espiritual sobre os tempos que ora vivemos. Estádios desportivos onde se jogou (e pode vir a jogar) sem pessoas, numa outra alegoria que significa e desvirtuação do espírito do desporto.
- Aniversários: Dois grandes benfiquistas fizeram anos da passada semana de quarentena (o que me vai também acontecer). Refiro-me a Artur Santos, um meu ídolo dos anos 50 e início de 60, um senhor exemplar, com quem, há semanas, tive a oportunidade de estar numa visita guiada ao Benfica Campus com a minha neta Joana. E, 41 anos mais novo, Rui Costa, um jogador que fazia do futebol um poema sobre a relva através da sua bola-caneta e que continua, felizmente, sempre ligado ao seu clube de coração. A ambos, aqui do Alto Alentejo, os meus parabéns."

Bagão Félix, in A Bola

O DESPORTO NA PRISÃO: UM POUCO DE LIBERDADE


"Segundo Erwing Goffman (1922-1982), que foi considerado o sociólogo norte-americano mais influente do século XX, existem instituições totais. Podem ser definidas como locais de residência e de trabalho, onde um grande número de indivíduos estão numa situação semelhante, separados da sociedade por um período de tempo e têm uma vida fechada e formalmente administrada.
Os estabelecimentos prisionais inserem-se nesta perspectiva. Melhorar o bem-estar dos reclusos, modificar os seus comportamentos e atitudes, desenvolver as suas capacidades de viver juntos, aprender a respeitar os outros e de se conformar às regras, facilitando, assim, a sua reinserção na sociedade, são alguns dos objectivos prosseguidos pela política prisional. Neste âmbito, o desporto tem um papel a desempenhar.
O Conselho da Europa e a Organização Mundial de Saúde preconizam o recurso às actividades desportivas junto da população prisional, enquanto factor de equilíbrio e na prevenção da reincidência, permitindo às pessoas detidas de se integrar num grupo e de respeitar as regras. Por outro lado, favorece a adopção de uma higiene de vida e preenche um objectivo de saúde. Do ponto de vista normativo, constam diversas disposições no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e no Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais.
Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) é o organismo responsável pela prevenção criminal, execução de penas, reinserção social e gestão dos sistemas tutelar educativo e prisional. No âmbito da sua missão, tem a “programação e organização de actividades socioculturais e desportivas”. Um relatório de actividades e autoavaliação da DGRSP, de 2014, dá-nos conta que foram realizadas 485 actividades desportivas em estabelecimentos prisionais de grau de complexidade de gestão elevado e médio, com o envolvimento de entidades externas. O EP de Caxias, com um grau de gestão elevado, foi o que mais beneficiou, com 28 actividades na área desportiva. O EP de Bragança, com um grau de gestão médio, registou 120 actividades desportivas. Em 2018, um outro relatório da mesma entidade, informa que, no âmbito das medidas de flexibilização das penas, foram concedidas 92 licenças de saída administrativa por razões desportivas (31,1%, n=92), ficando em segundo lugar. As de razão laboral foram as primeiras com 41,4% (n=115).
O testemunho de um recluso, que foi condenado a nove anos e meio de cadeia, é elucidativo do que se passa em muitos estabelecimentos prisionais: “quando se fica em preventiva, nas instalações junto da polícia judiciária de Lisboa, não existem condições para a prática desportiva. Aquilo não tem nada: uma bicicleta estática e uma máquina de remos. O páteo é exíguo. Em outras instalações, as condições são também precárias, os aparelhos de ginástica estão ultrapassados e cheios de remendos, que vão sendo reparados pelos reclusos. Quem tem mais conhecimentos lá dentro, utiliza os ginásios e muitos são discriminados. Para se utilizar o espaço, é preciso fazer-se uma inscrição prévia, na medida em que existem várias classes. Quando o ginásio é gerido por um professor de educação física, realizam-se uns campeonatos de futebol, andebol ou ‘crossfit’, pois eles têm que justificar o ordenado. Algumas associações promovem internamente workshops de ioga. Quando o ginásio é gerido por uma outra pessoa interna, é tudo mais complicado. Os jogos de futebol são de evitar, pois existem picardias e é promotor de conflito e de problemas, sobretudo para aqueles mais ‘picados’ que não têm fair-play. A prática de artes marciais e desportos de combate são interditas, pois os guardas prisionais têm receio. Para aqueles que fazem muitas horas de “ferro” (musculação), é complicado porque depois ficam com muita fome e a comida dos estabelecimentos prisionais é péssima. É a lei da selva. O que eles nos querem dar é medicação, para andarmos todos calmos e a dormir”. Será que a concepção laudatória do desporto e dos seus poderes (educativo, pacificador, socializante, etc.) no meio prisional suscitam algum debate na sociedade portuguesa?
Será que a prática desportiva pode ajudar a suportar a encarceração, oferecendo um espaço de descontração e de sensação de liberdade? De acordo com as características dos estabelecimentos prisionais (muitos com sobrelotação crónica desde há muitos anos), e das instalações disponíveis, quais são verdadeiramente as actividades desportivas “oferecidas”? Será que a prática desportiva no meio prisional é uma recompensa oferecida para aqueles que não incomodam a ordem interna estabelecida? A prática desportiva é somente lúdica ou serve para a convivência social ordenada? Muitas questões que merecem resposta."

O BASQUETEBOL REINVENTA-SE? - PARTE 2


"Na sequência do texto com o título “O basquetebol reinventa-se? Parte 1”, vamos proceder a uma análise mais detalhada sobre o basquetebol. A parte 2, terá uma incidência sobre a área competitiva, e a parte 3 sobre a formação.
No que diz respeito ao sector da competição, os problemas de competitividade e organização não são exclusivos da Liga Placard. No passado, lemos declarações de treinadores a queixarem-se da falta de compromisso por parte de atletas seniores nos escalões secundários e os problemas de competitividade e organização também estão presentes. Por outro o número lado o número de jovens que chegam à equipa sénior e capazes de entrar na rotação de minutos é muito escassa.
Para alguns destes problemas, uma das razões apontada é que o basquetebol português não oferece uma compensação remuneratória que justifique a dedicação a tempo inteiro. Como tal, a formação académica ou mesmo profissional está em primeiro lugar.
Mesmo não tendo sido perfeito, longe vão os tempos em que profissionalismo, contribuiu com resultados de relevância à selecção nacional masculina e às diversas equipas de clubes que disputavam as competições europeias. A impossibilidade de os jovens poderem ser profissionais leva a que os mais habilidosos ou mais necessitados procurem outras modalidades como resposta às suas ambições.
O desafio que se coloca é, depois de identificados os problemas relativos a cada competição, saber se podemos encontrar medidas que possibilitem termos competições atraentes para clubes, jogadores, patrocinadores, parceiros e capazes de atrair adeptos, dando uma nova atractividade às competições. 
Num momento cheio de desafios e repleto de incertezas é conveniente fazermos uma reflexão sobre um conjunto de situações com que nos vamos deparar nos próximos meses, quase todas fora do controlo de quem organiza as nossas competições e que podem afectar o normal desenvolvimento da Liga Placard, Proliga, Liga Feminina e competições abaixo.
O problema causado pelo Covid-19 originou um enorme impacto na economia e nos modelos organizacionais das empresas, e também na gestão desportiva das diversas competições e clubes.
O basquetebol felizmente tem uma competição que é uma referência ao nível mundial na gestão desportiva e todo o basquetebol no mundo acaba por girar à volta das inúmeras decisões da NBA. 
Nesta fase do desenvolvimento da pandemia, a época da NBA está suspensa e ninguém consegue dizer com segurança sobre se a época vai ter um fim ou se vai recomeçar, sendo que uma das hipóteses é prolongar a época durante o verão. Neste momento cancelar a época parece um cenário pouco provável, mas tudo depende da segurança que realmente vier a existir e os últimos números referenciados pelos diversos modelos são preocupantes.
Para além do términus desta época, uma das questões do momento é o início da próxima época da NBA e quando é que pode ter lugar. Diversos executivos têm exprimido a sua convicção de que alterar o começo da competição de outubro para meio de dezembro seria benéfico para a Liga. O CEO da equipa dos Atlanta Hawks, Steve Koonin, recentemente relançou o debate sobre as vantagens e Marc Cuban, proprietário dos Dallas Mavericks foi um dos que apoiou a ideia. Uma coisa é certa, a NBA debate-se com problemas de audiência, especialmente na fase inicial da competição, momento que coincide com um dos momentos mais fortes da NFL (Liga de Futebol Americano), e capacidade para atrair os adeptos mais jovens. Por outro lado, os horários dos jogos da costa oeste são considerados demasiado tardios para quem está na zona este do país, o que torna difícil esperar que os adeptos se mantenham acordados até tão tarde para ver os jogos. Jogos esses que por sinal muitas das vezes têm a presença de alguns dos melhores jogadores e equipas mais fortes da NBA.
Pode-se perguntar em que é que isto interfere com a Liga Placard?
Eu diria que interfere em muito, não no recrutamento directo, mas sim na calendarização do recrutamento. Se a NBA alterar a sua calendarização, todo o período de contratação de jogadores americanos será completamente diferente. É claro que as equipas podem não contratar jogadores americanos, mas estes são por natureza os jogadores que apresentam melhor relação preço/qualidade. 
O cenário agrava-se se os jogadores universitários que ao fim do 4º ano acabam o ciclo universitário (os chamados seniores) poderem vir a usufruir de um ano suplementar ou de extensão do seu percurso desportivo, por via de a NCAA ter terminado a sua época antes da fase mais importante e mediática das equipas e de exposição dos jogadores perante adeptos, mas também das equipas da NBA. Esta situação levanta um problema real ao Basquetebol Português, visto que estes são os jogadores que as equipas portuguesas mais possibilidades têm em contratar.
Se estas alterações vão ser implementadas para a próxima época tudo depende do tempo que a pandemia durar e a sua extensão. Mas se a NBA vier a modificar o seu período competitivo, penso que a FIBA acabará por ter de ajustar a calendarização de diversas competições. Um outro problema que se coloca é de não sabermos com rigor quando é que os jogadores estrangeiros poderão viajar e ter a certeza de que não estão infectados, reunindo assim condições de saúde para desenvolver a actividade e contacto social. Quando poderão realmente partir? será que terão de fazer quarentena quando chegarem a Portugal?
Além das dúvidas acerca da definição da melhor calendarização possível e do recrutamento, coloca-se igualmente o problema da sustentabilidade económica dos clubes.
Anuncia-se uma recessão profunda, as empresas vão estar mais preocupadas com o voltar ao trabalho e começar a produzir seja produtos ou serviços, salvar o máximo de empregos possíveis e perceber como o mercado se comporta no reinício da actividade, do que eventualmente pensar em patrocínios desportivos.
Assim, o meu conselho é que as competições portuguesas comecem o mais tarde possível. Só tem vantagens. Dá tempo para os clubes se adaptarem a uma nova realidade e à FPB perceber em que ambiente organizacional vai ter condições para organizar as diversas competições.
Quanto às equipas que poderão disputar a época de 2020/2021 nas diversas competições seniores principalmente Liga Placard, Liga Feminina e Proliga, deve-se ter em conta dois factores:
1- A sustentabilidade financeira do clube;
2- Sustentabilidade de recursos humanos (número e qualidade de jogadores para poder competir com as outras equipas);
O desafio que temos pela frente não passa pelo mero direito de descida e subida de divisão, embora se deva respeitar o espírito dos regulamentos. Os tempos são outros e exigem novas abordagens. 
Existe a necessidade de haver critérios de presença em cada competição mais rigorosos e de fácil verificação, para evitar que a competição tenha uma imagem negativa e não seja competitiva. O número de equipas participantes deve ter em consideração a validação desses factores, tendo sempre em mente que é preciso ter uma competição que seja uma mais valia para todos.
Qual a visão que temos para cada nível competitivo? Qual o seu propósito? Como é que vamos comunicar com os adeptos? Que tipo de relação vamos ser capazes de criar com eles? Que tipo de parcerias vamos conseguir desenvolver? Como é que esperamos que nos apoiem e como é que podemos apoiar? No fundo temos de elaborar um plano estratégico por competição.
Não podemos deixar de querer ter competições equilibradas, competitivas e que atraiam adeptos sem termos em conta igualmente as normas de segurança, dando claras indicação de que é seguro ver um jogo ao vivo.
Com este enquadramento desportivo, económico e social, começar o mais tarde possível só pode trazer vantagens aos clubes, à competição e aos adeptos.
Ter audácia para reinventar o basquetebol português deve ser expresso em quatro objectivos:
- Aumentar o número de jogadores portugueses com impacto nas principais competições que as equipas disputam;
- Melhorar a nossa posição nos rankings da FIBA, ao longo da próxima década, (sim, não é erro: década!);
- O aparecimento de novos valores deve corresponder a uma estratégia de comunicação que permita que estes sejam facilmente identificáveis pelos adeptos e público em geral, vindo a ser referências dos seus clubes, da selecção nacional, do basquetebol em geral, no fundo a construção da imagem do ídolo de que o basquetebol tanto carece;
- Ao mesmo tempo diminuir a forte dependência dos jogadores estrangeiros na produção das equipas das diversas competições masculinas e femininas;
Neste cenário será que a FPB tem vontade de reinventar o basquetebol português ou perderá a oportunidade que o momento (infelizmente) oferece?"

PRIMEIRAS PÁGINAS DOS PASQUINS TUGAS


segunda-feira, 30 de março de 2020

PERGUNTEM AOS PÁSSAROS


"Já vi este filme. As imagens repetem-se: não passa ninguém nas ruas, a cidade ficou deserta, e os pássaros tomaram o seu lugar nas bordas dos telhados, nos parapeitos das janelas, nos fios de electricidade. Pássaros e pássaros e pássaros. De todas as espécies. Na minha varanda, três gaivotas observam o correr do rio numa ansiedade de peixes. Há um silêncio tão profundo que pode ser que o mundo tenha acabado sem a gente dar por ela, fechados na prisão mais larga de todas as prisões, esta prisão que, de repente, passou a ser a Terra inteira, sem uma esquina onde possamos esconder-nos. 
No filme que vi, tantas vezes aliás, nunca percebi se o mal estava nos pássaros ou em nós. Ou se era um mal absorvido pela própria inconsciência de que ele existe em qualquer lugar onde haja homens e pássaros. Da minha varanda não consigo ver esse mal invisível, inimigo insidioso, mas vejo os pássaros que fixam o Sado em silêncio. Estou cá no alto da torre da resistência, no meu posto, procurando os anjos tortos, esses que vivem na sombra e, como dizia Drummond de Andrade, não tenho teogonia, não tenho parede nua onde me encostar, nem cavalo preto para fugir a galope. Recordo-me das aulas de Física: “Um lugar tão infinitamente compacto que fica sem dimensão chama-se singularidade”.
A singularidade dos pássaros. Sacodem as penas e olham-me como se a culpa fosse minha. Talvez, como no filme, consiga sair de casa num mutismo completo, meter-me no carro e partir para longe. Só que, desta vez, o mal que nos assoberba não tem longe nem distância: está em todos os espaços de todos os espaços, principalmente inserido nas feridas da nossa solidão, que é a de não nos permitirem acarinhar os que vivem no movimento de rotação do nosso amor irrevogável. Drummond outra vez: 
“Que pode uma criatura senão
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?”
Não sei responder. Perguntem aos pássaros..."

O ANTES E DEPOIS...


"Tivemos a felicidade de ver Garrincha transformar um pequeno guardanapo num latifúndio, segundo as palavras de Armando Nogueira (completam-se hoje 10 anos sobre o falecimento deste)…
Fomos felizes por termos tido a oportunidade de termos visto uma nota dez ser atribuída a Nadia Comaneci, por termos tido a possibilidade de assistirmos aos desempenhos de Ayrton Senna e de Michael Schumaker e por termos visto Michael Jordan suspenso no ar (I believe I can fly).
Yelena Isinbayeva, Usain Bolt e Michale Phelps, fizeram-nos delirar… tal como a final do Campeonato Europeu de Futebol de 2016.
Josep Guardiola e os ‘mind games’ de José Mourinho mostraram-nos que nem só da ‘taktiké’ dos gregos vive o futebol…
E poderíamos também considerarmo-nos felizes por termos sido contemporâneos de Livramento, Agostinho, Eusébio, Damas, Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernando Chalana, Manuela Machado, Aurora Cunha, Jorge Fonseca, Telma Monteiro e tantos outros…
Foi preciso um ser minúsculo, na fronteira entre o ser vivo e o ser não-vivo, para transformar o nosso ‘status’ de espectador… e se nada será como dantes, talvez tudo passe a ser como dantes tomando novas qualidades como diria Camões. Foi preciso um ser minúsculo para o futebol dar conta que não poderia existir sem os espectadores, para as televisões descobrirem que não poderiam passar sem os comentadores desportivos e as suas guerras, para a imprensa desportiva dar conta que começava a ter falta de sensacionalismo.
Foi preciso esse ser minúsculo para receitas de publicidade, direitos de imagem e de direitos televisivos no futebol decaírem… Como escreveu ontem Jorge Valdano – outro génio com quem convivemos –, num artigo com o título «o vírus contou a verdade ao futebol», “o coronavírus arrebatou a atenção, a preocupação e os heróis. Os aplausos foram dos estádios para as varandas.” Foi preciso o aparecimento do mesmo, o seu alastramento e a declaração de pandemia para o COI se aperceber que não domina tudo, que não se move impunemente entre grandes cifras, que não dita as regras…
Muito se afirma que nada será como dantes após esta fase, após esta época que atravessamos, que o desporto a isso não escapará e aponta-se para uma grande evolução para formas “desportivas” em que predominarão as ancas no sofá e o comando na mão. Morreu o rei, viva a rainha, quer seja a Playstation quer seja a Xbox. Disso foi exemplo o facto de o Braga ter “transferido” o seu jogo com o Santa Clara para a Playstation e ter convidado o público a assistir através da internet – de um lado Diogo Salomão, do outro Ricardo Horta. A Liga Portuguesa de Futebol pegou nesta ideia e reproduziu a jornada anterior através de duelos individuais de FIFA20, à semelhança do que já havia sido anunciado em Espanha e Itália.
Os e-Sports vieram para ficar. Definitivamente! Mesmo sem a componente “movimento” que é parte integrante do desporto. O lançamento de um livro, entretanto adiado, pelo Comité Olímpico de Portugal, intitulado “e-Sports: O desporto em mudança?” irá levantar uma ponta do véu. A outra ponta do véu já está levantada: em Espanha, os prémios monetários e as audiências online (o Bétis – Sevilha, organizado por estes clubes há duas semanas teve 62 mil espectadores nas plataformas digitais) mostraram-se surpreendentes.
A Allianz, a Red Bull, os M&Ms e a Kia deitaram mãos à obra e não deixaram os créditos por mãos alheias. A publicidade e as mensagens subliminares continuarão a marcar presença nesta nova forma “desportiva” e continuaremos a ser manipulados como consumidores.
Mas os mesmos não estarão isentos, para além destes, de outros perigos. O doping, a fraude e a corrupção poderão marcar presença, tal como a própria exploração infantil e até o suicídio, a violência, a morbilidade ou a morte súbita. Recordamo-nos que em 2005, um casal na Coreia do Sul deixou morrer acidentalmente o seu filho à fome porque, curiosamente, estavam completamente absortos num jogo em que tinham de cuidar de uma criança virtual. Em 2007, na China, um homem morreu depois de jogar 50 horas seguidas ‘World of Warcraft’. Em 2012, em Taiwan, um homem de 23 anos foi encontrado morto num ‘cybercoffe’ após ter jogado durante 10 horas seguidas imediatamente depois de ter terminado um longo turno no seu trabalho.
As novas qualidades de que nos falava o poeta continuarão enfermas e submetidas ao capital. Novas virtudes (?), velhos vícios!"

O PACTO DAS MODALIDADES

"Tem se escrito muito sobre um eventual pacto nas modalidades entre Benfica-Sporting e Sporting-FC Porto. Algo que para muitos adeptos do Benfica tem parecido uma decisão “mansa” do Benfica. No entanto, na minha opinião, esta decisão pode fazer sentido. Vou tentar analisá-la ao pormenor aqui.
No passado recente (últimos cinco anos), que atletas foram “roubados” entre estes clubes?
a) Benfica - Sporting. O Benfica foi buscar Célio Coque, Afonso Jesus, André Sousa e Miguel Ângelo ao Sporting em Futsal e o Daniel Neves no Andebol. O Sporting contratou Gonçalo Nunes no Hóquei, Carlos Carneiro e Cláudio Pedroso no Andebol e Cláudio Fonseca no Basquetebol. Além destes atletas nas modalidades colectivas, houve uma série de trocas nas modalidades individuais. Os mais célebres foram no Atletismo, onde o Sporting contratou Nélson Évora, Hélio Gomes, Rasul Dabo, Tiago Aperta, Marcos Caldeira e Jorge Paula. Mas houve muitos mais. O Sporting também praticamente acabou com a equipa feminina de Atletismo e com a equipa masculina de Judo do Benfica, e ainda contratou nosso melhor jogador de Ténis de Mesa - o Diogo Carvalho, o que acabou por levar à despromoção do Benfica para a 2º Divisão da Modalidade. Já o Benfica foi buscar recentemente o Anri Egutidze do Judo e também contratou vários atletas de Atletismo ao Sporting, o mais popular foi o antigo medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Atenas 2004, Rui Silva. Aliás, segundo consta até foi a mudança de Rui Silva que gerou isto tudo. O Benfica foi ainda contratar o peruano André Carrillo ao Sporting, mas no futebol.
b) Sporting - FC Porto. Telmo Pinto, Vítor Hugo e Alvarinho no Hóquei, Pedro Spínola no Andebol e o Diogo Araújo no Basquetebol saíram do FC Porto para o Sporting. Já o FC Porto foi buscar Rui Silva no Andebol.
c) Apesar de não ser parte do pacto, pelo menos até agora, fiz também o levantamento das trocas Benfica - FC Porto. O Benfica foi buscar José Silva no Basquetebol. O Porto contratou João Soares no Basquetebol (que pelo meio esteve emprestado um mês a uma equipa da 3º Divisão Espanhola), António Areia no Andebol (que o Porto acabou por ter que indemnizar o Benfica, visto que ainda tinha contrato com o Benfica) e Hugo Santos no Hóquei.
Há mais jogadores com passados em mais do que um clube, mas nunca foram directamente de um lado para o outro. O Roberto Reis no Voleibol por exemplo esteve um ano no Espinho antes de ir para o Sporting. O Gonçalo Alves no Hóquei depois de sair do Sporting passou três anos na Oliveirense antes de rumar ao Porto. São dois bons exemplos. E claro, houve mais trocas no passado. Por exemplo Gonçalo Alves, Bebé e Davi no Futsal saíram todos do Sporting para o Benfica, mas há mais de 10 anos atrás.
Se olharmos para os nomes que falei, a verdade é que não houve assim tantas mudanças que tenham feito muita diferença. O Sporting e o Porto conseguiram tirar duas das melhores promessas do Benfica no Hóquei, mas nem Gonçalo Nunes, nem o Hugo Santos renderam grande coisa nos seus novos clubes para já. O Nélson Èvora não acrescentou nada ao Sporting e até fez com que o Benfica tivesse que se inovar acabando por contratar o Pedro Pichardo. Os jovens todos que o Benfica foi buscar ao Sporting no Futsal também não têm acrescentado nada ao Benfica. As mudanças mais significativas a nível desportivo acabaram por ser Rui Silva e António Areia no Andebol para o Porto e o Diogo Carvalho no Ténis de Mesa para o Sporting.
Apesar de não terem existido assim tantas movimentações, os clubes subiram imensos os seus orçamentos nas modalidades na segunda metade da década 2010-2020. No caso do Sporting temos os valores oficiais graças à auditoria que foi feita às contas da Direcção de Bruno de Carvalho. O relatório é público e é fácil de encontrar na internet. O Sporting passou a gastar 176 mil euros no Carlos Ruesga no Andebol, 186 mil euros no Dieguinho no Futsal, 116 mil euros no Nélson Évora e 153 mil euros no Pedro Gil no Hóquei, quando três anos antes, os atletas mais bem pagos nestas modalidades eram Pedro Solha (Andebol, 58 mil euros), Alex Martins (Futsal, 77 mil euros). Rui Silva (Atletismo, 33 mil euros) e ngelo Girão (Hóquei, 73 mil). Além destes atletas, todos os outros foram bem aumentados. O salário médio no Sporting em Futsal subiu 69% em três anos, 116% no Andebol e 124% no Hóquei. Só que isto não aconteceu só no Sporting. Aconteceu também no Benfica.
O Sporting conseguiu levar o Nélson Évora, mas não se ficou por aí. Tentou levar outros jogadores, como o André Coelho no Futsal, o Carlos Nicolia no Hóquei, a Telma Monteiro no Judo e certamente que outros atletas foram abordados. Estes foram as propostas mais “populares”. Nesta situação, a única maneira que o Benfica teve para segurar os seus melhores, foi aumentá-los e oferecer uma proposta equivalente aquela que o Sporting oferecia. O Benfica passou de gastar 4.6 milhões de euros em gastos com pessoal das modalidades em 2016-2017 (com mais duas modalidades do que o Sporting, Voleibol e Basquetebol) para gastar quase 8 milhões de euros em 2018-2019. O prejuízo das modalidades do Benfica passou de 5.8 milhões de euros em 2016-2017 para 12.1 milhões de euros em 2018-2019 - atenção à palavra prejuízo.
Havendo pacto, o Sporting não irá abordar jogadores do Benfica e o Benfica não irá abordar jogadores do Sporting. Vai haver maior disputa entre os clubes por atletas a nível nacional antes de eles assinarem pelos clubes, mas a partir daí, se o atleta quiser receber mais, terá que ir para o estrangeiro ou para uma Oliveirense ou Fonte de Bastardo ou Modicus, que tradicionalmente não têm as mesmas capacidades que qualquer um dos grandes tem. Os clubes com o passar do tempo vão começar a baixar os seus orçamentos e eventualmente até poderão contratar estrangeiros melhores, mantendo a mesma base da equipa, gastando menos dinheiro. O pacto será positivo para aquele clube que souber melhor identificar talento e captá-lo.
Mas lá está, o impacto deste pacto só será visível daqui por algumas épocas. Os contratos não vão começar a baixar da noite para o dia. No entanto, para já, parece ser algo que poderá beneficiar-nos mais.
Este pacto não é uma decisão desportiva. É uma decisão financeira."

PRIMEIRAS PÁGINAS DOS MÉRDIA TUGAS


domingo, 29 de março de 2020

NO MEU MUNDO TUDO CORRE ÀS MIL MARAVILHAS


"Enquanto durar esta coisa, podem contar, aqui neste cantinho, com resultados, entrevistas, escândalos de mais de três centímetros e um vasto noticiário sobre uma carrada de acontecimentos extraordinários que nunca acontecerem

No meu mundo não há aquela coisa. Em não havendo aquela coisa, está tudo como era suposto estar. E, por isso é urgente retomar, sem preconceitos, a discussão filosófica sobre os três centímetros que a linha do VAR considerou para anular um golo ao FC Porto no último jogo antes daquela coisa chegar. Contra quem foi o jogo? Já ninguém se lembra? É verdade. E é, pior ainda o desleixo. Não pode ser este abandono, este desalento esta apatia, esta rendição. Salutares e atentíssimos ao que se passa no futebol português é como nos devemos posicionar, por vício e consequente obrigação moral, ainda que nada se passe. No meu mundo, por exemplo, passa-se tudo como se nada de invulgar se passasse. Posso até adiantar que o Benfica está outra vez na liderança isolada do campeonato nacional. Foi canja. E muito graças ao Gabriel, que regressou em grande depois de uma paragem forçada de dois meses por causa de um vírus ocular. Um vírus ocular, puf... que brincadeira de crianças.
Era assim que os nossos jornais desportivos se deviam comportar perante a situação criada por aquela coisa. Inventando. Seguido escrupulosamente o calendário da Liga principal e inventando sem dó nem piedade os relatos, os resultados e as polémicas de todos os jogos, jornada a jornada. Só pode ser esta a receita. Eu, confesso, compraria o jornal que me garantisse numa primeira página pintada a vermelho que o meu clube já seguia na frente outra vez graças ao hat trick de Dyego Sousa no jogo de Portimão à extraordinária exibição de Odysseas Vlachodimos no jogo como Tondela e, muito principalmente, graças aos três penáltis falhados por Alex Telles nos três jogos do FC Porto vá lá saber-se contra quem. Sim, porque isto de falhar penáltis toda a todos.
Eu compro o jornal que me traga aquela grande entrevista com o Gabriel estampada em manchete. Gabriel celebrando a sua total recuperação e o seu extraordinário momento de forma. E também a sua proverbial humildade. 'Devo o hat trick ao nosso capitão', era o título em letras gordas. E, por baixo, em letras mais pequeninas, Gabriel explicava o porquê dessa divida: 'Foram três assistências milimétricas do André Almeida'. E,de novo por baixo, seguindo a mesma linha da paginação uma fotografiazinha no canto inferior direito da primeira página a ilustrar na perfeição a sintonia entre os dois jogadores André Almeida, ainda que estranhamente sem bigode, puxar de orelhas a um Dyego Sousa ainda estupefacto.
Resumidamente, enquanto houver aquela coisa podem contar comigo para o fornecimento semanal de resultados, de declarações sensacional, de escândalos de mais de três centímetros e de um vasto noticiário sobre uma carrada de acontecimentos extraordinários que nunca aconteceram. Tudo aqui, neste cantinho."

O LEGADO DE JORGE JESUS NO BENFICA


"São dias estranhos os que vivemos. Isolados, escondidos, assustados...e no final unidos numa guerra dura contra um inimigo invisível. No espaço de uma semana as nossas vidas mudaram 180º graus e entrámos numa espécie de "3ª guerra mundial" de consequências imprevisíveis. Nas outras guerras seríamos enviados para uma terra desconhecida com uma arma na mão e o coração na outra. Nesta pedem-nos que fiquemos momentaneamente em casa, sentados no sofá a engordar e a ver séries. Se queremos salvar-nos a nós e ao próximo, é o melhor que podemos fazer. E o futebol? Parou, estagnou, quebrou. Dizia-se que era "a coisa mais importante das coisas menos importantes", mas neste momento nem isso é. Só que o bichinho está cá sempre...no meio de "mitigações", "distâncias sociais", "achatamentos de curva", várias vezes vem à cabeça...e o futebol? Quando voltará ninguém sabe, por isso sobra olhar para trás. Recordar, reviver, relembrar.
Em conversas com amigos por whatsapp, skype e demais plataformas, há um assunto sempre polémico ao qual fujo sempre um pouco, mas porque não falar agora dele? Sim, ele mesmo. A figura. A personagem. The one and only: Jorge Jesus. Figura que ainda hoje, cinco anos depois de ter saído, divide o Benfica e os Benfiquistas. O legado dele foi bom? Devia ter continuado? Tem perdão a saída para o Sporting e as declarações que teve? Deve voltar? Sim, sim, talvez, talvez. Explanemos os argumentos de quem está terminantemente contra:
"Jorge Jesus esteve 6 anos no Benfica e só ganhou 3 campeonatos!" - E quantos campeonatos venceu o nosso Glorioso no passado recente antes de ele chegar? Em 15 anos...um título. Foi neste cenário dantesco que Jorge Jesus entrou e disse que íamos jogar o dobro e o dobro se calhar era pouco. Venceu também 1 Taça de Portugal, 5 Taças da Liga e 1 Supertaça. Levou o clube a duas finais da Liga Europa. Jogávamos todos os anos futebol de altíssima qualidade. E quanto ao "3 em 6"...Sven Göran Eriksson, indiscutivelmente um dos grandes treinadores da História do clube venceu 3 em 5. Taças de Portugal? 1 em 5. Finais europeias? Levou o clube a duas, também as perdeu. E é um grande! Um dos maiores! E Guardiola? Alguém duvida que é o melhor treinador da actualidade? Em 4 anos no City vence "apenas" 2 campeonatos. Já nem vou aos títulos de Klopp, também ele porventura o melhor treinador do mundo. Um treinador não pode ser só definido pelos títulos.
"Jorge Jesus teve sempre grandes equipas e grandes investimentos" - E o rival não teve? Recordo: os 3 campeonatos que Jesus perdeu (um deles porque aconteceu Kelvin caído do céu) foi para um FC Porto que nesses 3 anos, em 90 jornadas perdeu 1 jogo! Fez dois campeonatos invictos! Era o FC Porto de Hulk, Falcão, Lucho, Moutinho, James Rodriguez...um clube que só em dois laterais (Alex Sandro e Danilo) chegou a gastar 26 milhões de euros (em 2011!). O Benfica também investiu forte e feio, embora talvez não tanto como o FC Porto, mas e então? Isso faz um treinador menor? Guardiola e Klopp quanto dinheiro já gastaram em jogadores no City e Liverpool? Mérito dou eu a treinadores que exigem reforços e grandes equipas e não colegas como Rui Vitória ou Bruno Lage que aceitam o que a "estrutura" lhes dá, sem agitar as águas.
"Jorge Jesus não apostava nas camadas jovens. O projecto do Seixal ia morrer" - É verdade. Jesus cometeu muitos erros no Benfica (David Luiz a defesa esquerdo no Dragão...ainda hoje me arrepio com isso!) e um deles foi esse. Não ver o talento de Bernardo Silva é inexplicável. Tal como Cancelo ou talvez Gonçalo Guedes. Não vejo muitos mais jogadores desse tempo no Seixal que ele tenha desperdiçado. E acredito que com tempo ele ia acabar por potenciar esses jogadores, tal como potenciou outros. Quem eleva o jogo de Matic ou Enzo Pérez, não ia fazer igual a Lindelof ou Renato Sanches?
"Jorge Jesus saiu do Benfica para o Sporting!" - É verdade. E bem o "odiei" por isso durante algum tempo, principalmente naquele campeonato 15/16. Mas passado algum tempo, depois da poeira assentar...de quem foi a culpa? Cada vez mais percebi que foi a "estrutura" que o expulsou e não o contrário. Exactamente porque queriam um treinador fácil de manejar e que prometesse maior aposta nas camadas jovens.
"Jorge Jesus não é Benfiquista e é um sacana!" - Também é verdade. Teve atitudes deploráveis, a maior de todas o "safanão" que deu ao Sr. Shéu. Essa é muito difícil de perdoar! O Sr. Shéu (nunca consigo escrever só "Shéu") é uma lenda do nosso clube e merece ser tratado com a maior das vénias. 50 anos a servir o clube! Nem Vale e Azevedo ousou tocar nesse Benfiquista com B grande. Mas acredito que Jesus tenha pedido desculpa e o Sr. Shéu, como grande pessoa que é, tenha aceite. Mas ok, Jesus não é puro...não é um Toni. Não é Benfiquista. Não é um cavalheiro. Isso bloqueia-lhe o regresso ao clube? Quem acha que sim, já olhou mais para cima? Para o Presidente dos últimos 16 anos? Está ali um cavalheirismo e um Benfiquismo intocáveis? Se aceitamos um, porque não aceitamos o outro?
"O ciclo de Jorge Jesus no Benfica acabou. Não deve regressar" - Não e talvez. Na minha opinião, deixar sair Jesus do Benfica foi um erro histórico. Não desastroso, porque o Benfica é tão grande em Portugal que vários treinadores o podem fazer campeão, mas acredito plenamente que se tem tornado num Alex Ferguson nacional neste momento tínhamos vencido tanto ou mais do que vencemos e a nossa hegemonia seria bem mais clara. Porto e Sporting estariam muito para trás. Deve regressar? Aqui está a minha grande dúvida. Que o clube ia melhorar muito o futebol jogado, não duvido. Mas ele ganhou tantos anti-corpos entre os nossos adeptos que não sei como seria após o primeiro empate ou derrota. Como iria o estádio da Luz reagir? E sim...ele é um sacana. E desrespeitou o Sr. Shéu. E foi para o Sporting. E normalmente regressos nunca correm tão bem como a primeira vez. E a primeira vez já não foi perfeita.
Como todas as grandes figuras, Jorge Jesus é polémico. É polémico no Benfica, é polémico no Sporting e se ficar lá mais tempo, talvez também no Flamengo venha a ser polémico. Mas Jesus é já uma figura enorme no futebol Português. Alias...bom, o mundo virou bananas, portanto vou arriscar dizer isto, o que tenho a perder? Foi Jorge Jesus quem destronou Pinto da Costa. Pronto, está dito. Se alguém destruiu a hegemonia do Porto, se alguém quebrou a dinâmica esmagadora de Pinto da Costa (mesmo que momentaneamente, o futuro o dirá) foi Jorge Jesus. Ok e a idade do decano presidente Portista também contribuiu. E Vieira tem os seus méritos. Mas o Benfica muito deve a Jesus. E Jesus muito deve ao Benfica. Depois do divórcio, deviam voltar a casar-se? Talvez sim. Talvez não. A polémica continua e não fui eu que a resolvi neste artigo."

PRIMEIRAS PÁGINAS DO LIXO JORNALÍSTICO TUGA


sábado, 28 de março de 2020

PIORES TEMPOS VIRÃO


"Não será preciso ser o génio da lâmpada para perceber que os campeonatos não vão terminar e não haverá futebol tão cedo

Na semana em que morreu Albert Uderzo, o genial autor dos irredutíveis gauleses e da sua aldeia, fica a ideia de que também nós precisamos de uma poção mágica e de um competente druida como Panoramix que nos ajude a manter as nossas aldeias.
Nesta fase de nenhumas certezas, aqui escrevi na última semana que não haveria Jogos Olímpicos nas datas marcadas. Cumpriu-se o óbvio, houve bom senso. Não será preciso ser o génio da lâmpada para perceber que os campeonatos também não vão terminar e não haverá futebol tão cedo. Por muito que nos custe, a quem gosta tanto do jogo e da sua adrenalina, essa é a única solução razoável e sensata face a realidade que vivemos. Os tempos são difíceis e vão ser ainda muito piores. A consciência da realidade ajuda a enfrentá-la, de nada serve cognitivos deslizantes criarem mundos alternativos que não existem. Para neles viverem em fantasia. Não  estamos em tempo de ficção e não haverá mais futebol esta época.
Pedro Martins, técnico do Olympiakos, disse, com sabedoria, mas foi pouco escutado, que mesmo depois de passar a pandemia as equipas precisam de algum tempo para regressar à competição. Este ano já não haverá condições para mais competições nacionais ou europeias. Não creio que haja condições sanitárias, nem grandes alterações de circunstâncias que permitam competições nas próximas 10 semanas.
A OPA do Benfica não foi por diante, as dúvidas levantadas pela CMVM e a alteração de circunstâncias justificam esta decisão. Embora, de acordo com a minha ideia de Benfica, seja sempre positivo sermos donos de nós próprios e termos o maior controlo possível sobre os nossos destinos, longe das negociatas de outros interesses e, por isso, quanto maior for o controlo sobre o nosso capital melhor. Reconheço que nestas condições foi a melhor situação. O Benfica fez bem em desistir da OPA. Acaba o ruído e isso é inestimável nesta fase. Não penso como Eça Queiroz n'A Correspondência de Fradique Mendes: «Todo o jornal destila intolerância (...) e cada manhã a multidão se envenena aos golos com esse veneno capcioso». Mas a verdade é que o ódio ao Benfica, as dúvidas legítimas ou a mera ignorância alimentavam diariamente ruído e histórias sem nexo que em nada beneficiavam o clube e o seu presidente. Nestas condições, assim é melhor para o Benfica.
Por fim, neste Portugal com muita gente a falar e menos gente a fazer, assistiu-se a críticas (de sportinguistas) a Frederico Varandas por este ser ter disponibilizado para servir o seu País, nas Forças Armadas como médico. Não sou do Sporting, mas, no seu critério,os anormais são os autores das críticas e não o presidente do rival que fez o que deve fazer um homem de bem nestas circunstâncias. Que fique com as críticas dos colegas de clube e com o elogio de um rival que aprecia gente decente."

Sílvio Cervan, in A Bola

JUNTOS, SOMOS MAIS FORTES


"Nem sei bem explicar-vos o orgulho que tenho na Fundação Benfica. Não é só pelo 'Para ti Se não faltares', o projecto que combate o absentismo e o insucesso escolar. Nem se resume ao 'Benfica faz bem', quando os atletas do Clube interagem com crianças e jovens para fomentar a autoestima e a confiança. É por tudo. São as campanhas humanitárias, as preocupações sociais, os valores transmitidos, o desporto inclusivo e o estar sempre atento ao mundo em que vivemos. Ainda agora com a pandemia vimos bem o peso que o SL Benfica e a sua Fundação podem ter para fazer a diferença. Por um lado, a oferta de ventiladores e de apoio financeiro. Por outro, o trabalho de proximidade com a Guarda Nacional Republicana para acompanhar os idosos isolados em risco, principais alvos da covid-19. Serão cerca de três mil pessoas beneficiadas, neste caso.
É mais do que justo destacar aqui o trabalho das inúmeras pessoas que trabalham na e para a Fundação, heróis muitas vezes invisíveis, uns mais anónimos do que outros, que vestem a camisola, que se fazem voluntários, que fazem acontecer.
É também para isto que existe o Sport Lisboa e Benfica. Num momento como o que passamos, a nível mundial, é cada vez mais importante mantermo-nos juntos, unidos num objectivo comum. Há que derrotar a epidemia, mas também ajudar quem mais precisa agora e aqueles que vão precisar a seguir. Sim, o coronavírus não vai desaparecer. Até pode acontecer, clinicamente falando, mas os seus efeitos serão prolongados e duradouros na mente, no corpo, na sociedade, na comunicação social, na economia ou no desporto. Por isso, no próximo IRS (509259740, o número mágico) ou quando tiver tempo para partilhar, lembre-se da Fundação."

Ricardo Santos, in O Benfica

QUARENTENA


"Levado à letra, Almada Negreiros estava enganado. Aos portugueses, tendo todos os defeitos, não é necessário a coragem por só lhes faltarem as qualidades para serem um 'povo completo'. A forma ordeira empenhada e quase massificada com que a recomendação de distanciamento social foi acolhida e respeitada contradiz esse pessimismo acerca de Portugal, não obstante o previsível bota-abaixismo que se seguirá, afinal uma das actividades predilectas dos nossos tempos livres.
Teremos, porventura, limitações de toda a espécie, mas compensamo-las com resiliência, voluntarismo e serenidade, entre outros, além da propensão para um certo fatalismo que, embora geralmente indutor de entropias várias, é agora, em tempos de crise extrema como a que vivemos, uma virtude. Aceitar a inevitabilidade de consequências nefastas será o primeiro passo para combatê-las e, pelo menos, mitigá-las. Haveremos de enveredar por um chorrilho de acusações, mas no final do dia interessarnos-á, sobretudo, que possamos juntar-nos à mesa para convivermos, comermos, bebermos e desdenharmos seja lá o que for.
E há o Sport Lisboa e Benfica, exemplo bastante para refutar a tal citação do Almada, pois foram portugueses que o criaram a desenvolveram, inspirados numa visão utópica, logo incumprida, mas continuamente perseguida e almejada.
Cada benfiquista tem uma visão para o Benfica, sabendo que o nosso querido clube estará sempre aquém do que projectamos para ele. Nesta catástrofe, a acção da Fundação Benfica e das Casas do Benfica, os planos de contingência e sua imediata implementação no Clube e avultada doação ao Serviço Nacional de Saúde aproximam o Benfica, indubitavelmente, da minha visão do Benfica."

João Tomaz, in O Benfica

SAUDADES


"À medida que o tempo passa, as saudades crescem. Saudades de ir à Luz, de me sentar nas bancadas, da ansiedade antes e durante os jogos, da euforia dos golos, de comemorar as vitórias. Também das partidas fora de casa, muitas vezes diante da televisão a roer as unhas entre o sofá e os momentos em que deixo de conseguir ficar sentado. Saudades também das outras modalidades. Do básquete. Do hóquei. Das idas ao pavilhão. Da verificação atenta dos resultados e das classificações nas noites de domingo (os números agora são outros e chegam minuto a minuto: de contagiados, de mortes...).
Saudades também de outros jogos, de outras ligas. Da Premier League à hora do almoço nos sábados. Da Liga Espanhola à hora do jantar (agora são as conferências de imprensa da DGS...). Das provas europeias a meio da semana. Saudades da NBA, da Fórmula 1, do ciclismo. Do desporto. Da vida normal. Da vida. O tempo é da angústia.Também de ausência. Quem sabe de perda. Nunca atravessámos nada como isto. Ninguém estava preparado. Tentamos abstrair-nos. Pensar que tudo não passa de um susto. De um pesadelo. De um momento mau. Há que ver o lado positivo, se ele existe. Talvez Albert Camus tivesse razão quando dizia que nas horas de flagelo há mais cosias no homem para admirar do que para desprezar. Ou José Saramago, que afirmava que a alegria e a tristeza, ao contrário da água e do azeite, poderiam sempre andar unidas. Vale a pena tentar. Viver um dia de cada vez é a receita. Enquanto se espera. Para não desesperar. Para não ceder. Tudo isto há de passar. E tudo talvez volte a ser como antes. Um dia. Ai, esse dia..."

Luís Fialho, in O Benfica

SOLIDARIEDADE


"Nestes tempos de crise e de profunda incerteza, o Sport Lisboa e Benfica revelou a sua dimensão humanista ao realizar a doação de 1 milhão de euros ao Serviço Nacional de Saúde.
Numa parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, a maior autarquia do país e com um orçamento de 948 milhões de euros, e com a Universidade de Lisboa, a maior a nível nacional, com um orçamento de 375 milhões de euros, o SL Benfica passou das palavras aos actos. Enquanto assistimos a discursos e promessas vãs, um clube, uma autarquia e uma universidade chegaram-se à frente.
No Benfica tem sido sempre assim, desde 2003, quando Luís Filipe Vieira assumiu o comando desta nau. Na sua tradição solidária, os dirigentes e gestores benfiquistas deram uma prova de acção e de pragmatismo. O milhão de euros será destinado à compra de equipamento médico para fazer face a este maldito vírus. O exemplo do Benfica devia ser seguido por todos aqueles que passam a vida a apregoar os valores da solidariedade e da ajuda humanitária. Em tempos de crise, o Benfica e os seus dirigentes nunca faltam à chamada. Todos conhecemos o papel da nossa Fundação como instituição particular de solidariedade social, ao longo dos 11 anos de vida. Agora, em parceria com a GNR, a Fundação Benfica faz chegar, diariamente, a 3000 idosos isolados, packs alimentares individuais. Além disso, a nossa Fundação forneceu três ventiladores para hospital de Lisboa, Porto e Coimbra. Todos estas iniciativas foram tomadas no curto espaço de quatro dias. Somos, de facto, um clube exemplar. Uma verdadeira instituição de utilidade pública."

Pedro Guerra, in O Benfica

PRIMEIRAS PÁGINAS DA LIXEIRA JORNALÍSTICA TUGA


sexta-feira, 27 de março de 2020

UM RAIO DE SOL NA ÁGUA FRIA


"Severino Varela tinha um pacto com a honra. O Boina Fantasma dava-se ao luxo de recusar ofertas irrecusáveis

Como de costume, Severino chegou pontualmente à estação de ferries de Montevidéu depois de ter percorrido La Marseillaise a passo estugado. Já a bordo viu um raio de sol saltitar na ondulação irritada do Rio da Prata e convenceu-se por dentro de que o dia seria feliz se pudesse guardar nos olhos aquela luz fugidia.
Severino gostava particularmente daquela travessia. Quase todos os dias ia e vinha de Montevidéu a Buenos Aires, cerca de quatro horas e meia no total, mas desde que aceitara trocar o Peñarol pelo Boca Juniors nunca lhe passou pela cabeça ir morar para a margem sul do rio. Isto passou-se em 1943, já Severino Varela Puente tinha 29 anos. Começara a sua vida de marcador de golos do River Plate de Montevidéu e, agora, dedicava-se a espinafrar o juízo aos defesas do outro River Plate, grande rival do Boca.
Quando desembarcou na Avenida Antártida Argentina, no cruzamento com a Cecilia Grierson, o céu de Buenos Aires estava aberto como um sorriso e nem uma nuvem projectava a mais pequena das sombras. Em seguida entrou no automóvel do seu companheiro Lucho Sosa, que viera buscá-lo, e seguiram ambos à taramela para La Bombonera, no Barrio de la Boca.
Era Setembro. Dia 26. O estádio encheu-se a pouco e pouco para o Boca Juniors-River Plate, aquele jogo que ninguém tem o direito de ignorar. Numa parede ali perto alguém escreveu. «Hasta los muertos aman el Boca». E as bancadas estavam tão repletas de gente que não havia quem duvidasse que até os mortos caminhavam lado a lado com os adeptos que se orgulham do seu lema: ‘La mitad más uno’. Enquanto encaixava meticulosamente a sua boina branca na cabeça, Severino dizia para si próprio: «O mais um sou eu».
Tinha um gosto especial naquela boina. Usava-a para diminuir os efeitos do impacto da bola cada vez que cabeceava. Dava-lhe um aspecto rebelde, libertário. E assustava os adversários quando surgia, de supetão, na grande área contrária para tocar a bola para a baliza em movimentos tão rápidos que davam a sensação de serem invisíveis. No River, os defesas atemorizados chamavam-lhe ‘A Boina Fantasma’.
Até dentro do campo, Severino era um homem livre. os treinadores permitiam-lhe essa liberdade para bem da equipa e ele usava-a sem parcimónia, galgando metros de terreno com a sua passada larga e elegante que terminavam em pontapés letais.
«Ser libre. Ya en su vientre mi madre me decía
’ser libre no se compra ni es dádiva o favor’».
Ao contrário da vontade dos hinchas caseiros, o River Plate marcou cedo. Demasiado cedo, até. Golo de Félix Loustau que, com Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera e Ángel Labruna formou uma linha avançada que ficou para a história com o nome de ‘La Máquina’.
Nunca ninguém sobre porque é que Severino Varela se transformou no maior inferno da existência do River. A verdade é que mal entrava em campo, fervia porrada sobre o rapaz de Montevidéu. Valia tudo para pará-lo. E caçavam-no pelo campo fora a patadas como se fosse uma ratazana.
Nessa tarde, as canelas de Severino ficaram roxas de tanto apanhar. E ele tranquilo, sereno, sem replicar, sem queixas, sem lamentos, tal e qual um fantasma com a sua orgulhosa boina branca. Depois marcou encontro com a bola centrada pelo seu amigo Lucho Sosa à entrada da pequena área do River. Começou a correr mas sentiu uma angústia fina por dentro, Parecia que lhe espetavam no coração a agulha da desarmonia e ele era cumpridor dos seus deveres como poucos. Por isso atirou-se para a frente, voando baixinho, mergulhando como um peixe em águas que conhece de cor e salteado. Chegou precisamente à hora marcada. A bola entregou-se à vontade da boina branca do Fantasma e seguiu para o abraço das redes. Em seguida, Varela simplificou a tarde com um pontapé sem metafísica: 2-1. Era o seu quinto golo em seis jogos face ao River Plate. Tomou banho, penteou-se para trás com um pouco de brilhantina e Sosa foi deixá-lo junto ao porto para que apanhasse o ferry de regresso a Montevidéu.
Um dia, o Boca Juniors fez-lhe uma oferta irrecusável: pôs-lhe na frente um cheque em branco. Ele recusou. Era um homem de rotinas. Gostava do seu trabalho de escriturário e não pretendia demitir-se: «No quiero llevarme la plata que no puedo ganarme». Tinha um pacto inquebrável com a honra. Seis anos mais tarde voltou à Bombonera para ajudar do Boca Juniors que estava à beira de descer de divisão. A Boina Fantasma afastou todos os outros fantasmas. Atravessou o Rio da Prata de volta a casa. Não lava nem mais um tostão no bolso. Havia coisas que não tinham preço."