"A crença de que a exactidão da máquina é superior à humana não deve persuadir-nos a aceitar decisões milimétricas, nas quais a margem de erro é por vezes superior ao valor que se pretende estimar.
O sistema KINEXON, em grande destaque no Mundial FIFA, teve a sua estreia em Munique, no dia 22 de Outubro de 2017, num jogo de uma divisão secundária do futebol alemão. As instâncias internacionais do futebol têm sido cautelosas na introdução de ferramentas de apoio à arbitragem. Os primeiros passos foram dados com a tecnologia da linha de golo (2012), a que se seguiu o VAR (2016). Mas é com a introdução do KINEXON e o seu sistema semi-automático de fora de jogo, que se dá o “salto quântico”.
Tal como é anunciado, o sistema KINEXON usa num dispositivo, colocado no centro da bola, que contém um sensor inercial (IMU) e um sensor de banda ultra larga (UWB). Este envia informação (a 500 Hz) para um conjunto de 26 antenas (LPS – sistema de posicionamento local), colocadas em posições determinadas à volta do estádio. Adicionalmente, dispõe de 12 câmaras “olho de falcão” (a 50 fps) que seguem a bola, bem como 29 pontos do corpo dos jogadores. O sensor UWB em conjunto com o LPS permitem determinar, por triangulação, a posição da bola, ajudando a decidir se a bola saiu ou não de campo, e se passou ou não a linha de baliza. O sensor inercial (IMU) mede outros parâmetros, como a aceleração e a velocidade angular. Para a questão do fora de jogo, embora o sensor UWB determine com maior precisão (500 Hz) o instante em que há o contacto com a bola, a posição dos jogadores envolvidos continua a ser feita através das imagens das câmaras (50 Hz). E, portanto, no instante determinado pelo UWB, pode ou não haver o fotograma correspondente.
O sistema tem ainda outra inovação. Antes, tanto o alerta de offside, como a marcação das “tradicionais” linhas estavam dependentes de intervenção humana. Agora, o processo é automatizado: um programa de inteligência artificial emite o alerta e, para dissipar as possíveis dúvidas dos adeptos, é gerada a imagem sintética 3D dos jogadores envolvidos, na posição que levou à decisão.
Não pretendo fixar-me em demasia sobre os aspectos técnicos das soluções concretas, porque os seus detalhes ou não são inteiramente revelados, ou a complexidade do processo é tal que não permite senão uma análise experimental. Um estudo deste tipo, publicado em 2021, foi efectuado no Fraunhofer Institute for Integrated Circuits. Embora o sistema KINEXON testado não seja exactamente o do Mundial, são reportados erros para a posição do jogador e da bola de 8 ± 1 cm e 15 ± 3 cm, respectivamente.
Um dos requisitos para analisar o offside é estabelecer o instante em que o jogador que faz o passe entra em contacto com a bola. No arranjo mais simples, em que se recorre a uma única câmara, a maior ou menor precisão na determinação desse instante depende do número de fotogramas por segundo (fps). Como as câmaras do Mundial funcionam a 50 fps, isso traduz-se num intervalo de tempo de 20 ms entre fotogramas sucessivos.
O instante do fora de jogo estará algures entre o último fotograma antes do contacto e o primeiro em que há contacto. Sendo a duração da interacção com a bola da ordem dos 10 ms, não é de excluir a situação em que nenhum dos fotogramas mostra o contacto. Nesta eventualidade, deveremos considerar os fotogramas imediatamente antes e imediatamente após o contacto.
O segundo requisito é saber onde está o jogador que recebe o passe, no instante em que este é feito. A situação de dúvida acontece no caso em que o referido jogador num dos fotogramas está para além, e no outro aquém do penúltimo defesa contrário. Resultando, portanto, numa análise inconclusiva, a menos que se façam interpolações.
Isto será assim, sempre que seja possível determinar inequivocamente os dois fotogramas referidos, e que neles seja clara a posição relativa dos jogadores envolvidos.
Dir-me-ão, esta análise é muito simplista. Existem várias câmaras e até já temos sensores na bola e nos jogadores. É assim possível medir velocidades, acelerações e estimar trajectórias. Todos estes dados podem então ser tratados por um algoritmo de inteligência artificial e os seus resultados convertidos em imagens sintéticas, fabricadas por potentes métodos de representação gráfica. Verdade.
A primeira observação é que, numa boa transmissão televisiva, resulta muitas vezes possível para o espectador, no momento mesmo em que vê as imagens, aferir do fora de jogo. E, quando tal deixa dúvidas, muitos outros casos podem ser humanamente decididos observando os dois fotogramas pertinentes. Restam as situações em que as melhores imagens disponíveis não têm um ângulo favorável, e aquelas em que o offside é, digamos, milimétrico.
A segunda observação é que quaisquer medições, e cálculos feitos a partir delas, têm um erro associado. Mais, esses erros propagam-se de forma intrincada (que só pode tratada estatisticamente) ao calcularmos novas grandezas em função de parâmetros obtidos anteriormente. Quanto maior for a complexidade do processo, mais difícil será estimar os erros associados aos valores finais das grandezas que procuramos obter.
Esta dificuldade explicará, eventualmente, a razão pela qual, mesmo no sistema que recorre apenas às imagens das câmaras, não seja apresentada qualquer estimativa do erro para a distância entre as duas linhas, traçadas relativamente ao corpo dos dois jogadores em apreço. Por outras palavras, não se fornece um valor para a precisão do processo. É o milímetro, o centímetro, o decímetro?… Não sabemos. Contudo, se a precisão for hipoteticamente de 10 cm, é óbvio que não se deve assinalar um fora de jogo por 3 cm.
Seja o seguinte exemplo. Por simplicidade, tomo o defesa parado. Se a velocidade do avançado (na direcção longitudinal do campo) for 5 m/s, em 20 ms (o tempo entre dois fotogramas de câmaras a 50 Hz) ele percorrerá 10 cm. Se no primeiro fotograma o avançado está em jogo por 7 cm, no segundo estará offside por 3 cm. Como não sabemos exactamente o instante em que o passe foi feito, convencionemos que foi a meio dos dois frames, i.e. passados 10 ms. Ora, sendo esse o caso, o avançado passaria a estar em jogo por 2 cm, e não offside por 3 cm.
Para além dos detalhes, creio ser importante um ponto de vista crítico, mais abrangente, sobre os métodos tecnológicos de apoio à decisão. Lewis Mumford analisou bem, em The Myth of the Machine, a tendência perigosa e potencialmente perniciosa que consiste em considerar a tecnologia como exacta, eficaz e infalível e, por oposição, o que é humano como defeituoso, falível e substituível. Este condicionamento leva-nos a menorizar a dimensão subjectiva – os nossos sentidos, experiência e inteligência – em favor de uma putativa objectividade da máquina. No presente contexto, isto traduz-se no entendimento da imagem sintética do fora de jogo como a verdadeira representação da realidade, a pontos de dispensarmos as imagens televisivas em replay, ou os dois fotogramas pertinentes. Embora, note-se, os nossos sentidos peçam ainda uma imagem, em vez de um simples sim ou não. Caminhamos, talvez, para elevar os sistemas tecnológicos à função de decisores (decision maker), em vez de simples auxiliares da decisão (decision aid), e a tornar assim irrelevantes todas as questões relacionadas com a sua precisão e margem de erro. Esta perfeita exactidão, anulando toda a margem de dúvida, terá mesmo influência na natureza do jogo.
No offside, a recomendação das instâncias de arbitragem era para, em caso de dúvida, o árbitro (humano) deixar prosseguir a jogada, dando a vantagem à equipa atacante. Na primeira versão VAR o jogo passou a ser interrompido, dando tempo à marcação (humana) das linhas, e retomado após a decisão. Agora, com o sistema semi-automático, a máquina emite um alerta para o VAR, que poderá confirmar a decisão. Mas, na verdade, com imagens 3D de precisão infinita, o sistema só não é totalmente automático, porque obriga o vídeo-árbitro a carregar num botão! Em ambas as versões tecnológicas, tudo o que se jogou, desde o incidente, até à interrupção, é deitado fora como se fosse riscado da acta.
No ténis, onde a tecnologia do Hawk-Eye (olho de falcão) é usada desde 2006, a perfeita exactidão é levada ao extremo, sem que já ninguém se interrogue. Tal só é possível porque a decisão sobre se a bola é dentro ou fora é tomada, não sobre o mundo físico, mas sobre o mundo virtual gerado pelo algoritmo: um mundo que ignora os erros das medidas directas e das calculadas, e onde a realidade é representada através de linhas de largura exacta e bolas perfeitamente delineadas e sem espessura. Não há sequer memória de o sistema alguma vez ter chegado a uma análise inconclusiva. Mais, a questão do erro está tão fora das preocupações, que são assinaladas bolas dentro (ou fora) por 1 mm (por exemplo, Federer-Nadal, final de Wimbledon, 2007), quando erro médio anunciado pela própria empresa (Hawk-Eye Innovations Ltd) é de 3.6 mm!
O objectivo de corrigir erros grosseiros do árbitro – por dificuldade de visão, distracção, ou mesmo motivos menos honestos – é desejável e louvável. Mas a crença (correcta na maioria das circunstâncias) de que a exactidão da máquina é superior à humana, não deve persuadir-nos a aceitar decisões milimétricas, nas quais a margem de erro é por vezes superior ao valor que se pretende estimar."
Desde que não haja factores subjectivos na análise, ou seja, que seja igual para todos, não há problema.
ResponderEliminarDe qualquer forma acho que deveria haver uma tolerância (10cm, por ex.) e só valores de fora de jogo superiores anulariam os golos. Sempre igual para todos e decisão das máquinas. Não só devido à exactidão mas sobretudo por não ser subjectivo (tal como no ténis).
O actual sistema de olhómetro dos VARs permite fraudes.
Como se tem visto na nossa liga.
E isso é o pior. A sensação que uns são beneficiados em detrimento de outros.