segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O CAMPEÃO OBSERVADO A DOIS ÂNGULOS DE VISÃO

Manuel Sérgio (foto ASF)
Foi na Rádio Renascença (e em meados de 1973) que os jornalistas Álvaro Guerra, Leite de Vasconcelos, ambos já falecidos, Carlos Albino (aposentado mas a colaborar, na companhia da Lídia Jorge, com a Câmara Municipal de Loulé) e Manuel Tomás, a trabalhar ainda na RTP, conseguiram criar o programa Limite, que com alguns ingredientes estilísticos ludibriava a censura e traçava, com mil cuidados mas sem parança, o seu itinerário radiofónico e... político! 

Certo dia, o Carlos Albino, meu colega na redação do extinto Jornal do Comércio, confidenciou-me: “O Limite não tem ninguém que se ocupe de temas desportivos e lembrei-me de ti”. E na meia luz de frases incompletas acrescentou: “Somos todos, como sabes, do contra. Não importa que fales de futebol, mas de temas que agradem a um certo público ”. E com um sorriso malicioso: “Entendes?”. Rapidamente entendi o que me pediam e, de coração ao pé da boca, aceitei logo o convite. Não é de estranhar por isso que, na semana do “25 de Abril de 1974”, tenha lido aos microfones da Rádio Renascença o texto que passo a oferecer aos meus pacientes leitores:

“A sociedade conferiu prestígios novos ao desporto (como afinal ao erotismo, o que pressupõe, como dado a considerar, uma inovadora ideia de corpo) mas, espelhando o clima de radicalidade que a ensombra, vestiu-o de antagónicas concepções doutrinárias. Para uns, o campeão, o atleta-modelo, surge à guisa de complemento necessário de todo um desporto-de-massa, fruto da inserção do desporto no desenvolvimento, entendido este como conjunto unitário. Para outros, o campeão, o atleta-cartaz, é o resultado do treino intensivo e sistematicamente dirigido de um indivíduo superdotado, o qual, tecnicamente estimulado, brota à margem do estado geral da política, da economia, da pedagogia ambienciais. Nestas circunstâncias, encontramos, no segundo ponto de vista alguns erros que passo a condensar nas alíneas seguintes: 

1. Cada país possui o seu conceito de prática do desporto, consoante se encontra subdesenvolvido, ou em vias de desenvolvimento, ou desenvolvido. O campeão que desponta à margem do desenvolvimento socioeconómico de um povo é a expressão de uma sociedade subdesenvolvida, ou seja, classista e hierárquica, onde só os privilegiados se aperfeiçoam, os mais dotados se educam. Sociedade portanto agressiva, porque limitativa dos direitos inalienáveis da pessoa humana, sociedade mágico-animista, porque sublima os estados de desigualdade social, com a criação de super-homens e semi-deuses (se há super-homens, há super-direitos, se há semi-deuses, há seres próximos do sobrenatural, a cultuar e a incensar).

2. Com uma descrição e avaliação do Mundo típica de estruturas arcaicas; com normas religiosas que desprezam a mulher e o corpo – o desporto educativo e recreativo não é sentido como necessidade primária das populações. Aqui, o desporto profissional ou de alta competição, porque gerador e mantenedor de proezas e mitos, leva a dianteira ao desporto-para-todos, o qual oferece os benefícios do exercício físico científico e criativo... a todos, indistintamente.

3. Em países fortemente classistas e por isso onde a saúde e a educação não foram efectivamente democratizadas, o apoio político e administrativo (autoritário e burocrata) esgota-se nas atenções e subsídios, concedidos ao espectáculo desportivo. O desporto-para-todos, por essa razão, carece de estrutura, de organização, de equipamento, de técnicos qualificados, de investigação e de verbas.

4. A falta de clubes desportivos escolares e de clubes para o lazer entrega o fomento do desporto educativo e recreativo a clubes, com modalidades profissionalizadas, os quais, por força das circunstâncias, o subalternizam, diante do espectáculo desportivo. Cabe aqui um esclarecimento: é uma ilusão pensar-se (e que radica na identificação plena do desporto com o espectáculo desportivo) que cabe aos clubes, com atletas profissionais, o fomento do desporto-educação e do desporto-lazer. As intenções que animam estes clubes-empresas não abrangem o jogo-desporto. A outros sectores da mesma sociedade deverá exigir-se a promoção e organização das actividades físicas, com finalidades pedagógicas, higiénicas e recreativas.

A matriz do desporto é, como se sabe, o progresso social. No “fenómeno social total” radicam os demais fenómenos parcelares. O espiritualismo angelista, por exemplo, que prega e “pobreza feliz”, a resignação incondicional diante dos absolutismos, religiosos e políticos, a fuga aos “problemas terrenos” e o refúgio numa religião platonizante, que não é fermento de uma sociedade mais justa e mais democrática, é o mesmo que origina o desprezo do desporto-para-todos, enquanto espaço para a liberdade e criatividade, enquanrt afirmação do homem-ser-incarnado.

Contudo, a causa imediata do progresso desportivo deverá centrar-se na explosão escolar, na democratização da cultura e simultaneamente no reconhecimento do desporto como elemento imprescindível do acto pedagógico (na escola e na educação continuada). E é então que da quantidade se pode chegar à qualidade. Estimulando aptidões, físicas e intelectuais e morais, em toda a juventude, naturalmente surgem os “campeões” em desporto, mas também em medicina, em literatura, em direito, em ciências, etc., aos quais são proporcionadas condições de especialização, nos diversos ramos do saber e podem assim renovar muito do que há de velho e caquético, na vida social.

Se a educação e a saúde são direitos de todos e não só de uma selecta minoria; se uma pedagogia válida não confunde educação com platonismo desvirilizante; se a educação física se refere ao homem todo e não unicamente ao que nele é biológico – se assim é, pode acreditar-se no campeão como coroa ou cúpula de um trabalho que se principiou pelos alicerces. O resto é fraude, se bem que aplaudida por muito intelectual obsoleto. 

Antes de nos quedarmos embasbacados em face das vitórias espectaculares das “super-vedetas” de alguns países, que desprezam os ideais democráticos, importa que tenhamos presentes as exigências de um desporto factor de civilização e de cultura, ou melhor: as exigências de uma visão e acção humanistas do desporto, para uma invenção humanista da sociedade. Os campeões serão como tumores malignos de uma sociedade enfraquecida, se a qualidade dos seus feitos e das regalias, que lhes são dispensadas, contrastar com as carências e a subcultura dos seus concidadãos”.

Este texto já é velho de 41 anos! Há nele expressões e palavras até, que caíram em desuso, no mundo do desporto!...Entretanto, dois dias após a precatada leitura deste texto, durante o programa Limite escutaram-se as vozes de Paulo de Carvalho e Zeca Afonso, cantando, respetivamente, “E depois do adeus” e “Grândola, Vila Morena”. Renascia um tempo novo, não o “estado novo”, em Portugal! Deixo aqui um abraço ao Carlos Albino, pelo convite com que me distinguiu. Com a sua habitual simpatia contagiante.
Manuel Sérgio é Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

Sem comentários:

Enviar um comentário