sábado, 20 de janeiro de 2018

QUERES SER JONAS?


Pensar no que pode estar dentro da cabeça do melhor marcador do campeonato, que marcou o 22º e o 23º golos no 3-0 do Benfica ao Desportivo de Chaves, é quase como imaginar o que terá empurrado os encarnados para uma das melhores exibições da época: a vontade e a motivação de se poderem colar aos rivais. Como estão agora.
Mas, o que é isto? Estava ali mexer num pequeno armário, um de gavetas, à procura daqueles documentos dos quais apenas precisamos quando não sabemos deles, quando pensei ouvir o som de algo ouço, como se a gaveta encostasse em nada. Desarrumei o armário e, na parede, havia um buraco, grande o suficiente para caber lá dentro. Espreitei e não consigo descrever o processo que me pôs aqui, a ver e ouvir e a sentir e a perceber o que ele vê, ouve, sente e pensa, a cada segundo.
Estou dentro da cabeça do Jonas.
(Aguentem, por favor, pois, às vezes, a melhor forma de abordar alguém que, semana sim, semana sim, apenas faz coisas boas ou melhores das que fez antes, sem cair em redundâncias e repetir elogios, é tentar pegar em coisas ficcionadas e aplicá-las à realidade; esta é uma dessas vezes e se, por acaso, viu o filme “Queres ser John Malkovich?”, vai-me compreender.)
E ele está no Estádio da Luz, no relvado mesmo, acabou de olhar para as chuteiras douradas e estamos, ou está, isto é esquisito, a mexer-se mais à frente ou para as costas dos defesas centrais, do que entre eles. Há sempre um deles na perseguição, encosta o corpo, tenta chatear e condicionar as bolas que chegam. Agora sei qual é a sensação de ficar imperturbável e sereno perante qualquer carga, pressão, rasteira, carrinho.
Nem o noto a puxar muito pela cabeça para jogar ao primeiro toque, tabelar ou receber um passe de forma orientada. Mas noto, é fácil, que há dois tipos em especial a olharem muito para Jonas - o Pizzi e o Krovinovic, quase todos os passes rasteiros e verticais que fazem vêm para nós. Para ele, melhor escrevendo, se fosse para mim, ou a maior parte dos outros que jogam na mesma posição que ele, em Portugal, não acontecia isto de não falhar um domínio, uma devolução, de não haver uma decisão mal tomada ou situação mal julgada.
Depois, isto já não consigo descrever, ou explicar, a bola cai-lhe mesmo à frente, a saltitar, no fim de uma fase com os seus cinco minutos em que o Benfica troca passes na área, ou à volta, e recupera todas as bolas perdidas logo ali. É um sufoco. E o último corte que a defesa do Chaves faz para aqui, onde Jonas remata de primeira e à meia altura e vejo a bola a entrar na baliza, junto ao poste direito. Ele olha depois para o topo do estádio e reparo que há 13’ no relógio. Quando ele volta a olhar, vamos em 19’ e Jonas acabou de marcar outro, depois de o Salvio driblar à direita, cruzar rasteiro e o Pizzi deixar passar a bola.
Nem um pingo de nervos, nenhum centésimo ou milésimo de segundo em que a mente abranda as coisas e pode fazer duvidar, dúvidas que fazem as pessoas hesitar ou, pior ainda, pensarem no que estão prestes a fazer. A Jonas sai tudo automático e, como há talento e jeito e técnica e aptidão neste corpo, não importa os 33 anos que tem. Não se notam.
E, de repente, o tipo ficcionado é expelido da cabeça de Jonas e aterra num qualquer beco em Lisboa, perto do rio. Imagem o mais fidedigna possível do tal filme em que um tipo descobre um buraco na parede que o transporta para a mente do ator John Malkovich, onde só consegue permanecer 15 minutos de cada vez. No caso do nosso amigo ficcionado, foram 20, talvez os melhores 20 minutos que o Benfica jogou esta época.
Jonas é Jonas, sim, e fez o 22º e o 23º golos no campeonato - não acrescentou outro, depois, porque António Filipe lhe saiu bem aos pés - mas os encarnados jogaram até ao intervalo com a intensidade, as tabelas, o ritmo e as ideias coordenadas. O Benfica foi as fintas de Salvio a saírem, os sprints de Grimaldo a abrirem espaços, os cruzamentos sempre perigosos de Cervi e até as jogadas com pouco toques promovidas por Pizzi, tudo ao mesmo tempo e em modo automático.

O 2-0 que havia ao intervalo demorou dois minutos, na segunda parte, a virar um 3-0, quando o médio que, nas últimas duas temporadas, era uma espécie de dínamo de coisas boas, reencarnou nessa versão dele próprio e, à entrada da área, recebe um passe e rematou com jeito. Pizzi, que desde o verão andava titubeante, aparentemente cansado e sem a pedalada de outros anos, estava a ser esse tal Pizzi.
E até Douglas embalava no ritmo da equipa. O lateral que só neste 20 de janeiro se estreou a titular no campeonato, o brasileiro para quem é sempre verdade atacar e apoiar quem ataca, mas é mentira ser tão intenso, como aí o é, quando defende e não tem a bola, inventou tabelas com Jonas até a bola chegar a Cervi e o remate do argentino ser defendido.

Como ele, também Salvio, Pizzi, Kroninovic e, claro Jonas, baterem em bolas que foram paradas por António Filipe ou não acertaram, por pouco, na baliza. Alguns deles, várias vezes. Porque o Benfica nunca abrandou por aí além, muito menos até ao estado a que têm estado as coisas esta temporada, e o Chaves era encolhido e asfixiado, sem conseguir libertar Pedro Tiba ou Renan Bressan para algo mais que não fosse tentar suster o ritmo encarnado.

Uma boa equipa, treinada por um bom treinador, que a faz intencionar ter a bola, passá-la desde trás pela relva e, puxando pelo lugar-comum, quer jogar bom futebol, acabou um jogo com um remate na baliza (sem perigo). O Chaves perdeu com um Benfica rotativo, agressivo, intenso e quase nunca desacelerador, com os planetas a alinharem-se para que todos os jogadores jogassem perto das suas melhores versões.
E não é preciso ficcionar, ou ir buscar um exemplo cinematográfico, para entender o porquê: ganhando, a equipa de Rui Vitória ficava a um ponto do Sporting e a dois (provisórios) do FC Porto, mesmo com todas as adversidades, tropeções e faces pálidas de jogo esta época. Uma possibilidade que pesa no lado mental e motiva, dá vontade e sintoniza toda a gente no mesmo - o que, muitas vezes, é o que falta para tudo o resto correr melhor. A única coisa má, que se pode tornar muita má, péssima, para o Benfica, é o joelho direito de Krovinovic, que ele torceu já perto do fim e o obrigou a sair lesionado.
Porque houve um antes e um depois com o croata, e a palidez do Benfica esteve quase toda no período até o treinador reconhecer que Krovinovic tinha de jogar e a equipa jogar com, e para ele.

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