Aconteceu duas vezes nos últimos tempos. Irritou-me em ambas as ocasiões. Bruno Lage aparece junto a um microfone após um jogo e explica a quem o ouve que «fomos Benfica». Fala sempre no plural, para expressar o laço inquebrável que o une aos adeptos. Tudo isto está certo em tese, mas, por vezes, suscita dúvidas. Voltei a fazer o que mandava a circunstância: rebobinei os 90 minutos na minha cabeça, averiguei qual foi a experiência dos adeptos mais próximos e cheguei à conclusão de que nenhum de nós compreendeu. O que pretende Bruno Lage dizer quando insiste em usar esta expressão, incompreendida por tantos correligionários? Será uma estratégia de comunicação? Será uma incursão pela pós-verdade, feita com o intuito de ganhar tempo até à próxima boa exibição?
Neste último jogo frente ao Moreirense, a equipa presenteou-nos com mais uma exibição mediana, pontuada por momentos de clara fragilidade, complementada, em particular na segunda parte, pela ansiedade crescente dos adeptos, que, em sete dias, viram a sua equipa sofrer quatro golos — como se marcar ao Benfica fosse agora uma tarefa ao alcance de todos.
Não foi a única intervenção infeliz de Bruno Lage perto de um microfone, nem tampouco a mais inovadora. Dois dias antes, na antevisão do jogo contra o Moreirense, o treinador do Benfica decidiu fazer algo que nunca tinha visto ser feito: anunciou um novo candidato à presidência do clube enquanto explicava não ser adepto de politiquices. Voltou a falar no plural, desta vez para se referir à recandidatura do «nosso presidente». Fiquei sem saber se Lage acabara de assumir funções na recandidatura de Rui Costa ou se, mais uma vez, tropeçou em palavras mal escolhidas. Qual dos cenários preferirá? Que o considerem um mau comunicador ou alguém que instrumentaliza conferências de imprensa para, com pouca subtileza, fazer pré-campanha pelo atual presidente?
O problema está no apelo a uma espécie de pacificação pré-eleitoral, fazendo uso de uma caracterização que mais parece dar a entender que é esse tema que calça as chuteiras e entra em campo. Não deixa de ser curioso que, tantas vezes, sejam os próprios jogadores a explicar que estas coisas não entram em campo e que não se deixam influenciar por acontecimentos exteriores ao jogo ou às instruções do treinador, para agora ser o próprio treinador a deixar subentendido que os fatores externos — nomeadamente uma eleição prevista para daqui a dez meses — podem ser uma explicação envergonhada para a instabilidade. Não estou certo de que os erros defensivos, as passadeiras estendidas no meio-campo ou a inoperância frequente dos jogadores mais avançados sejam a explicação mais popular, mas, às vezes, é importante não tratar os adeptos como crianças. Suspeito que o treinador do Benfica sabe disso.
Assim sendo, dou por mim a preferir a versão de Bruno Lage que fala alto e diz asneiras quando acha que ninguém está a ouvir. Não gostei do folhetim que provocou, mas disse mais verdades do que nas salas de imprensa. Pareceu, acima de tudo, mais comprometido em dizer aquilo que pensa e não tanto aquilo que acha que os outros querem ouvir.
Compreendo que um treinador possa ser um maestro de multidões, mas não deve tentar substituir o futebol com marketing. A razão é simples e ensinada a todos os estudantes da disciplina: não há marketing que salve um mau produto. Como vários sócios disseram nos últimos dias, em reação às declarações de Lage sobre eleições e candidatos, o treinador do Benfica fará melhor em dedicar-se àquela que é a sua responsabilidade: treinar e conduzir a equipa ao sucesso, se possível praticando um futebol mais agradável e que dê mais confiança aos adeptos. É um facto que já «fomos Benfica» esta época, mas ninguém levará a mal se Lage reconhecer que não temos sido Benfica tantas vezes quanto gostaríamos — nem perto disso. Poderia, por exemplo, falar mais vezes sobre os problemas identificados e reconhecer que boa parte destes continua por resolver. Lage já explicou que gosta quando lhe fazem perguntas sobre futebol, dando a entender que se devia falar mais sobre isso. À falta de melhores perguntas, por que não faz como na sua célebre conferência pós-áudio-da-garagem e avança sem esperar pelos jornalistas?
Humildemente, proponho uma solução: sempre que não formos Benfica, não batemos no peito para dizer que fomos Benfica. Provavelmente, estaremos mais perto de o ser se reconhecermos que ainda nos falta algo para lá chegarmos. A identidade do Benfica não se constrói porque alguém repete muitas vezes umas palavras bonitas. Tem que ser sentida por todos os adeptos e, já agora, pelos jogadores.
Nem de propósito: há poucos dias, no podcast Mata-Mata, cuja audição aconselho (YouTube, Spotify, Apple Podcasts, etc.), o ídolo Valdo pergunta a quem o quiser ouvir: será que os jogadores que hoje chegam ao Benfica conhecem o clube que vão representar? Não tenho dúvidas de que perceberão rapidamente que ali só as vitórias e o bom futebol podem saciar a fome dos adeptos. Mas será que entendem mesmo o que é o Benfica? No sábado, eram dois portugueses em campo. Esta época, só vimos mais do que três antes da lesão de Tiago Gouveia. E os restantes? Alguém dará a conhecer o clube a este contingente multinacional, para lá de uma visita ao museu que possa ser publicada nas redes sociais? Valdo acha que isso não acontece e partilha uma história que ajuda a perceber porquê.
O antigo camisola 10 conta como, num evento recente do Benfica, a sua presença foi essencialmente ignorada pelos atletas estrangeiros do clube, até mesmo os brasileiros. Ninguém sabia quem era Valdo Cândido Filho, internacional brasileiro que representou o seu país em dois Mundiais, um dos jogadores mais elegantes que passou pelo Benfica, duas vezes campeão nacional e um dos últimos finalistas de uma Taça dos Campeões Europeus com a águia ao peito. À saída do evento, Valdo perguntou a um rapaz que lá estava se podia tirar uma foto com ele. Tentou explicar-lhe quem era, mas o rapaz, de seu nome João Neves, respondeu que não precisava de explicação: «Sei exatamente quem é. Valdo Cândido Filho. Eu sou Benfiquista. Conheço a história do meu clube.»
É por estas e por outras que, sempre que alguém diz, de forma despropositada, que «fomos Benfica», eu tendo a pensar que nos falta qualquer coisa. E, sim, falta-nos ser mais Benfica no futebol, mas, como relembram aqueles que tão bem conhecem o seu clube, o tema vai um pouco para lá do jogo jogado.
Vasco Mendonça, in a Bola
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