Se bem penso, já há muito venho dizendo que os treinadores portugueses não sabem mais do que os bons treinadores doutros países. Afadigam-se alguns articulistas em tentar provar que os êxitos dos nossos treinadores, no estrangeiro, se devem à sua preparação científica, incomparável em relação à preparação científica dos treinadores doutros países, designadamente europeus. Na relação entre as pessoas (e portanto na relação treinador-jogadores) não há só necessidade de ciência, mas também de respeito, de arte, de valores. Temos uma identidade que nos faz um povo de fácil convívio, de comunicação atraente, de rápida compreensão de culturas e tradições alheias (o nosso povo o diz: “cada povo, com seu uso; cada roca, com seu fuso”). Não é porque sabemos mais que somos melhores treinadores, mas porque não copiamos figurinos estranhos à nossa maneira-de-ser, porque somos genuinamente nacionais, não escondemos a solidez e a fundura das nossas raízes e, daí, a nossa simpatia e generosidade e compreensão – que nem todos os povos têm, com tamanha nitidez, como aliás a filosofia e a antropologia nos ensinam. Para não fatigar quem tem a bondade de ler-me, cito o Padre João Ferreira, no seu livro Existência e Fundamentação Geral Do Problema Da Filosofia Portuguesa: “O temperamento português já foi repetidas vezes analisado por etnólogos e caracteriologistas nacionais e estrangeiros, como: Mendes Correia, Jorge Dias, Gonzague Reynold, Paul Descamps e também por alguns escritores, como Ramalho Ortigão, Joaquim de Carvalho, Cruz Costa, Afonso Botelho, Cunha Leão, etc. Segundo os estudos feitos, convém-se em anotar que o português é essencialmente dotado duma alma feminina, poética; é humano e doce (…), mais sensível do que racional (…), sentimentalista, idealista, galã, sociável, de fácil adaptação, etc.” (p. 148).
No futebol (e no desporto em geral) por força do cartesianismo, até há cinquenta ou sessenta anos atrás, a mente e o corpo consideravam-se como duas substâncias realmente distintas, podendo existir uma sem a outra. Assim, para o estudo do corpo, a fisiologia, a biologia bastavam. Quem falava do corpo como produto cultural e social? Muito poucos! O corpo, aliás, surge aos olhos dos estudiosos com um estatuto paradoxal: ora é um objeto entre os outros, o corpo-instrumento; ora é o lugar concreto onde a vida subjetiva se manifesta. Maurice Merleau-Ponty distingue o “corpo objeto” do “corpo vivido”. O “corpo objeto” é o organismo, o corpo tal como o estudam e analisam os cientistas; o “corpo vivido” é o corpo-sujeito, que as ciências descuidam, frequentemente. Vale a pena ler o poema “Lágrima de Preta” de António Gedeão, para entender-se rapidamente o que pretendo dizer: “Encontrei uma preta / que estava a chorar, / pedi-lhe uma lágrima / para a analisar. / Recolhi a lágrima / com todo o cuidado / num tubo de ensaio / bem esterilizado. / Olhei-a de um lado, / do outro e de frente: / tinha um ar de gota / muito transparente. / Mandei vir os ácidos / as bases e os sais, / as drogas usadas / em casos que tais. / Ensaiei a frio, / experimentei ao lume, / de todas as vezes / deu-me o que é costume. / Nem sinais de negro, / nem vestígios de ódio. / Água (quase tudo) / e cloreto de sódio”. De facto, uma lágrima não se resume ao que a análise laboratorial nos diz. Para além da água e do cloreto de sódio, pode haver, numa lágrima, amor, ódio, alegria, saudade, oração, êxtase, admiração, dor, sofrimento. Enfim, um número incontável de sentimentos que não cabem nas análises que nos chegam dos laboratórios. Os cientistas de pendor positivista não deverão esconder que há mais mundo, para além da biologia.
É moda, no nosso tempo, falar pouco do ser humano e mais e muito mais de normas, de regras e de conjuntos significantes. Por isso, na antevisão dos jogos de futebol, há quem não precise mais do que o 4x4x2, ou o 4x3x3, ou o 4x3x2x1, ou o 3x5x2, para um prognóstico de um jogo de futebol. Lembrando Péguy, “digamos a verdade, toda a verdade, só a verdade, brutalmente a verdade brutal, fastidiosamente a verdade fastidiosa, tristemente a verdade triste”. Com efeito, para mim, a única noção precisa e coerente de cientificidade, no Desporto, não é a que decorre dos métodos das ciências naturais, Não há, aqui, um modelo de cientificidade “a priori”. O ser humano é a unidade de uma complexidade. Há, nele, diversidade e complementaridade. Há, nele, e sirvo-me agora do que aprendi, em Edgar Morin: o princípio da unidade complexa, próprio de qualquer sistema; o princípio da inseparabilidade da ordem e da desordem, da organização e da desorganização, já que os eco-sistemas não se alimentam apenas de ordem; o princípio da complexidade lógica, ou o princípio da conceptualização complexa, que nos impõe o recurso a macro-conceitos, tais como: ordem-desordem, todo-partes, uno-múltiplo, causa-efeito, indivíduo-espécie, indivíduo-sociedade, sujeito-objeto, etc., etc.; o princípio da incerteza, pois que a incerteza é típica do pensamento complexo, tantos são os dados indispensáveis a ter em conta. Muito mais há a dizer sobre esta extensa problemática. Permito-me agora, fundamentado ainda em Edgar Morin, adiantar os quatro grandes princípios orientadores do treino desportivo: formar pessoas capazes de organizar os seus conhecimentos, mais do que armazenar as ordens emitidas pelo treinador, quero eu dizer: o treinador diz o que é preciso fazer, mas é a maneira-de-ser do jogador que as faz (e aqui o treinador não chega); ter sempre presente, em todas as situações, a condição humana, como dizia Rousseau: “o nosso verdadeiro estudo é o da condição humana”; aprender a viver, através da prática desportiva, pois que, na alta competição desportiva os problemas clássicos da vida são observados de forma amplificada e agravada; é a metodologia específica das ciências hermenêutico-humanas a metodologia do treino desportivo.
De que saber é o método? No que ao Desporto diz respeito, o saber é o de uma ciência hermenêutico-humana. É portanto, no meu modesto entender, pré-científico, ou pseudo-científico, interpretar o atleta em termos unicamente físicos, ou biológicos. A humanidade da pessoa ultrapassa muito (muitíssimo) a sua animalidade, não a suprimindo embora. É diminuta a diferença entre o aparelho cognitivo do chimpanzé e o do homem. A diferença encontra-se no número de neurónios e na reorganização do cérebro. Reside, aqui, a emergência das qualidades humanas irredutíveis, que se conhecem por pensamento e por consciência. É porque tem uma desconhecida dimensão espiritual que o fenómeno humano surge, como um novo fenómeno, no planeta Terra. De facto, para o bem e para o mal. Com maligna impertinência, o mal aí está, ilimitado e com defensores exaltados e acriminiosos. Mas o bem também nos rodeia. Também há sábios, heróis e santos, na História. Também há mentalidades superiormente aparelhadas, capazes de implementar e conceber instituições, como a Ciência, a Cultura e o Desporto nos revelam. O “homo ludens” não o descobrimos unicamente, nas várias formas de Jogo e de Desporto. Joga o cientista, quando investiga e o filósofo de ampla inteligência teorizadora e o literato novelista e romancista. Criar, para o “homo sapiens” é sempre jogar – jogar com o mítico e o racional, com a tradição e a utopia, com o mágico e o simbólico. É da síntese de tudo isto que o novo surge, tantas vezes inesperado, tantas vezes maravilhoso. Assisti, pela televisão, ao Valência-Barcelona da última jornada do campeonato espanhol. E não esqueço o passe do Messi ao Jordi Alba, que fez o golo do Barça. Foi um passe de 30 ou 40 metros, que chegou ao seu destino, ao Jordi Alba, com uma precisão milimétrica. É preciso saber jogar, para executar um passe tão perfeito. Só que não há jogos, há pessoas que jogam. Quanto mais humanos formos, melhor entenderemos o jogo.
Manuel Sérgio, in a Bola
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