" “Com a idade de 15 ou 16 anos, experimentei uma sensação de estranheza quando, ouvindo o relato do que se discutia, no Tribunal de Nuremberga, escutei os advogados de acusação e de defesa dando maior realce aos aspectos jurídicos dos crimes horrendos do nazismo do que aos seus aspectos psicológicos, sociológicos, éticos, políticos, ou seja, aos seus aspectos mais fundamente humanos”. Este é um texto de Jurgen Habermas (ainda felizmente vivo, com 88 anos de idade) que assim continua: “Como foi possível que numa cultura que integrou Hegel e Marx, dois autores onde o tema da realização concreta da liberdade adquire tamanha importância, tenham nascido o Hitler e os nazis? Como foi possível que os alemães não se tenham levantado, como onda gigante, contra esta monstruosa patologia social?”. E, a partir daquele momento, Habermas concluiu que a Razão, a Liberdade, a Justiça não poderiam estudar-se, unicamente, como questões teóricas, porque eram principalmente questões social e politicamente práticas. No seu livro Conhecimento e Interesse, Habermas distingue três interesses cognitivos: o técnico, o prático e o emancipatório: “O acesso às ciências analítico-empíricas incorpora um interesse cognitivo técnico; o acesso às ciências hermenêutico-históricas incorpora um interesse prático; e o acesso às ciências criticamente orientadas incorpora um interesse cognitivo emancipatório”. São demasiado evidentes, em Habermas, os significados de “técnico”, nas ciências analítico-empíricas, e de “prático”, nas ciências histórico-hermenêuticas (para muitos, ciências sociais e humanas). Mas… as ciências críticas? São aquelas que não dispensam a autorreflexão, como a psicanálise, em Freud, e o materialismo, em Marx, visando um objectivo emancipatório – autorreflexão que pretende libertar o sujeito do jugo dos poderes hipostasiados. E que portanto pretende ser reflexão, mediação, transformação.
Venho de ler dois livros do cineasta (e ainda escritor e intelectual e conhecido benfiquista) António-Pedro de Vasconcelos, O Futuro da Ficção e Um cineasta condenado a ser livre. Neles e no diálogo de amigos que vamos mantendo, assoma sempre o itinerário pensante do António-Pedro, não como os que memorizam, com unção e reverência, o saber alheio, para o repetir acriticamente, mas como os que fazem do saber alheio um interlocutor indispensável na demanda das questões que se procuram. É um homem de esquerda, salientando portanto o papel inapagável de Karl Marx, na história da humanidade, principalmente o seu humanismo - um humanismo real e não só um humanismo retórico, filantropicamente encomiástico, caridoso nas palavras, indiferente nas ações. Poderemos citar, a propósito, um dos grandes marxólogos do nosso tempo, José Barata-Moura: “O humanismo de Marx não é a celebração oratória de uma humanidade idealizada, para pequenos efeitos burgueses de gestão compensatória das abençoada ordem capitalista de exploração; do mesmo passo que também o seu comunismo não representa qualquer incarnação apoteótica de verdade eternas de recorte moralista, nem qualquer triunfo utópico de devaneios profético-organizativos, congeminados até ao pormenor por exuberantes e bem intencionados melhoradores do mundo” (Materialismo e Subjectividade, Avante, Lisboa, 1997, pp. 151/152). Também, em António-Pedro Vasconcelos não se descobrem, nas suas palavras, “verdades eternas”, porque o seu humanismo significa devolver ao homem todo e a todos os homens o que ao homem pertence, a sua humanidade, lutando sempre contra as condições adversas que a dialética da história lhe apresente.
Palavras sábias estas que o António-Pedro faz suas: porque é um ser humano e ainda porque é um artista e, como tal, um homem constitutivamente livre e libertador. É ele a dizê-lo, com uma nitidez que não admite dúvidas: “Para mim, a liberdade é um valor inalienável e é o valor supremo. É a base da relação que tenho comigo e com os outros, com o mundo e com o futuro. Em última análise, eu sou responsável por aquilo que me acontece. E isso, para mim, afastou o problema de Deus, mesmo que eu pense, como o Orson Welles, que nós temos de acreditar em qualquer coisa de superior” (António-Pedro Vasconcelos: um cineasta condenado a ser livre, diálogo com José Jorge Letria, Guerra & Paz, Lisboa, 2016, pp. 61/62). Num livro admirável, uma síntese magistral da história da arte, na cultura ocidental, António-Pedro manifesta-se radicalmente livre. Radicalmente? Sim, porque ser radical (e relembro Marx, como o António-Pedro o faz tantas vezes): “ser radical é tomar as coisas pela raiz”. Só que, “para o homem, a raiz é o próprio homem”, ou seja, o horizonte, onde o homem se projecta, é autenticamente humano. Desde os geniais artistas florentinos até a Holywood a história da arte pode resumir-se numa “longa luta em que os grandes criadores se batem pelo reconhecimento do seu estatuto e procuram libertar-se da autoridade dos Papas, dos mecenas e dos poderosos. Miguel Ângelo, enfrentando a autoridade de Júlio II, ao pintar, como quis, O Juízo Final; Ticiano, a quem Carlos V, o homem mais poderoso do Universo, apanhou do chão o pincel que ele deixara cair, impondo-se naturalmente pelo reconhecimento do seu génio”. E continua, avocando outros nomes, outros artistas: “Griffith, que inventou o cinema, com O Nascimento de uma Nação, reclamava para a 7º arte a mesma liberdade que tiveram os autores da Bíblia e Shakespeare (António-Pedro Vasconcelos, O Futuro da Ficção, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2012, p. 52). No cineasta António-Pedro Vasconcelos, é a liberdade que melhor assume o espaço ontológico do humano, do verdadeiro humanismo. Sem liberdade, a humanidade não acontece…
Os meus almoços quinzenais com o António-Pedro extravasam facilmente dos planos do cinema ou do desporto, em direcção a outras incursões teóricas, sem desconhecermos, tanto ele como eu, que a práxis, enquanto acção política, concita um maior interesse. É conhecida a sentença de Marx: “O indivíduo é o conjunto das relações sociais”. Um cristão-católico, Saint-Exupéry, diz quase o mesmo: “O homem não é mais do que um nó de relações, são as relações o que mais conta, para o homem”. Gramsci afirmou, sem titubear: “O homem é um processo, é precisamente o processo dos seus actos”. De facto, cada um de nós é aquilo que faz. E eu quero fazer-me, fazendo bons amigos. O que é um “bom amigo”? Para mim, é o que tem sede de uma sólida amizade. Há duas semanas, o Doutor José Tolentino Mendonça, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, foi convidado, pelo Papa Francisco, a pregar-lhe um retiro espiritual. E começou assim a primeira das suas prédicas, todas elas com a presença do Papa, que é um leitor fiel dos livros do Padre José Tolentino Mendonça: “Há muita sede, no coração dos homens”. E disse ainda: “É urgente redescobrir a bem-aventurança da sede. A pior coisa para um crente é estar saciado de Deus. Pelo contrário, felizes os que têm fome e sede de Deus”. A propósito, aconselho a leitura do último livro, de José Tolentino Mendonça, O Pequeno Caminho Das Grandes Perguntas. Nele, encontrei o seguinte: “A teologia da ternura tem sido uma das grandes insistências do Papa Francisco” (p. 113). O meu Amigo António-Pedro Vasconcelos insiste… que não tem fé. E acrescenta, com um rasgo rápido, perspicaz e dramático: “Mas a gente só sabe quem foi, depois de morto”. Mas, tendo ou não tendo fé em Deus, António-Pedro Vasconcelos, o intelectual, o cineasta, o benfiquista, o incansável peregrino do Bom e do Belo, no espaço oceânico da vida, é de uma ternura donde ressalta uma permanente afirmação da dignidade humana e uma indignada recusa de tudo o que possa ser redutor dela.
Por isso, acima do mais, somos amigos…"
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