quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A MISÉRIA DO NOSSO FUTEBOL


Sempre me interessei pelo futebol. Sou entusiasticamente adepto de um clube. Vibro com os seus sucessos e padeço com os seus desaires. Um sentimento naturalmente tão autêntico, como não isento. É esta aparente contradição que faz do jogo jogado simultaneamente uma delícia e um risco. Reconheço que nem sempre a racionalidade fica à frente da emoção. Como adepto, evidentemente.
Acontece que a atmosfera em redor do nosso futebol está a atingir tais níveis de inquinamento e poluição que, crescentemente, sinto necessidade de me voltar para dentro e ignorar o que quase sempre me aprazeu.
Chegou-se ao nível zero? Não, antes a um nível abaixo de zero. É como, com alguma indulgência, poderemos qualificar o estado a que chegou o ambiente no panorama futebolístico nacional. Jamais houve uma tal degradação, ainda que paradoxalmente num tempo em que até somos vitoriosos campeões europeus de selecções.
Estamos diante de um ar irrespirável. Tudo vale porque nada parece valer. Como na tourada, há todos as personagens e todas as cortesias. Os peões de brega que, mandatados na penumbra do submundo de ordenantes, fazem a figurinha (travestida de “anjo”) de mestres de graçolas, instigadores de veneno e geradores de ódios. Às vezes, até são pessoas com curricula respeitáveis que, todavia, se deixam envolver por afrodisíacos momentos de efémeros protagonismos. Depois, há os picadores que habitam em certos fora (não todos, diga-se em abono da justiça) e que têm sempre uma lógica fosforeira nos seus momentos de vã glória. Há os cavaleiros que, do alto dos seus animais, usam a táctica do toca e foge, lançando farpas e espalhando sangue e lama em jeito de ventoinha. Há os forcados (alguns até com c cedilhado) que, laboriosamente, tecem teias em troca de favores, prebendas e outras mordomias, sempre com um ar independente a fingir pegar pelos cornos do bicho. Há os toureiros, uns mais exuberantes no manejo da muleta, outros mais silenciosos e escondidos. Por fim, há o inteligente. Que sempre se considera moralmente acima dos outros, que sempre é o único e inimitável, que sempre se proclama peregrino da revolução ética que urge fazer.
Como no Titanic, todos cantam e bailam ao som da música, contribuindo para afundar o que ainda está emerso. Que lhes importa isso? Actuam na aparência de “salvadores da pátria”, quais redentores ungidos pela providência. Nem sequer querem saber que o desastre de uns é o desastre de todos. Falam como detentores de uma verdade que se esfarela no virar de um fim-de-semana seguinte. Agem como predadores sem se aperceberem que se estão a auto-mutilar. Desrespeitam-se uns aos outros com uma frequência tão regular, como institucionalmente letal. Não enxergam que, no dia seguinte, a água que os afunda lhes entra pelos poros da boçalidade e pelos pulmões da imbecilidade. Julgam-se imunes a todas as contingências e isentos de todas as formas respeitáveis de relação. Alimentados freneticamente por alguns modos ínvios de comunicação social, uns são verdadeiros vampiros à busca de sangue e raiva, outros há imperadores da má-criação, da barbárie ética, da vilanagem, da mentira, do boato, do anonimato ou da cobardia.
Os poderes públicos – com a honrosa, ainda que impotente, excepção da FPF – assobiam para o lado, ou prestam parvas vassalagens e distribuem honrarias, ou, ainda, dizem umas pias palavrinhas sem qualquer resultado. Isto já não vai lá assim. Legislem de modo a não beneficiar os infractores, actuem de maneira a não favorecer os incendiários. Todos agradeceremos, mas principalmente os futuros adultos que, hoje, enquanto crianças, só conhecem o lado mau deste entusiástico desporto.
Bagão Félix, in Público

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