terça-feira, 14 de novembro de 2017

UM AZAR DO KRALJ


Para Um Azar do Kralj, só há um português já convocado para o Mundial: Manélélé, o nosso Edward Snowden futebolístico
Qual Ronaldo e afins: Vasco Mendonça está encantado com Manuel Fernandes, o futebolista português mais injustamente ignorado da sua geração.
Qualquer futebolista nascido na década de 80 tem por adquirido que a relva é para se comer. E se é verdade que o futebol português nos tem dado muitos herbívoros, poucos são os centrocampistas que vemos comer a relva e, no âmbito dessa atividade metafórica, recorrer a talheres.
Manuel Fernandes é um desses casos raríssimos em que a rua, a genética, alguns treinadores atentos e outros tantos distraídos se uniram para produzir um senhor futebolista: inapelavelmente possante, tecnicamente evoluído, esteticamente cuidado, um bruto dum metrossexual, ainda assim pragmático quanto baste para fazer aquilo que se espera de um centrocampista: garantir a resolução dos mais diversos problemas físicos e cognitivos colocados por colegas ou adversários ao longo de 90 minutos com a magia dos predestinados e a estabilidade emocional de quem está apenas a fazer o seu trabalho.
Manuel Fernandes podia fazer tudo isto e depois desdobrar-se em entrevistas, o primeiro reduto da maioria: flash, na zona mista, de vida, de fofoca. Já lá vão 31 anos e muitas histórias por contar. Manuel Fernandes tem sabido resistir a essa tentação. De vez em quando, dá uma ou outra entrevista, não sabemos se para satisfazer a nossa curiosidade se para avisar amigos e familiares que está bem de saúde. O facto é que a emoção nunca se apodera dele, muito menos qualquer ressabiamento por ser o futebolista português mais injustamente ignorado da sua geração. Queria ver se fossem vocês.
Esta manhã lia um texto algures num site progressista sobre uma nova condição clínica observada nos EUA. Estão preparados? Então é assim: estas pessoas conseguem sentir o estado de espírito dos outros. Conseguem colocar-se no lugar do outro. Alguém chamou a estas criaturas iluminadas... “empaths”, de empathy. Bem vindos a 2017, o ano em que a intolerância deu mais umas voltas de avanço ao bom senso e a empatia passou a ser considerada um super poder. Talvez isso explique que, para a maioria de nós, seja difícil compreender a condição do nosso Edward Snowden futebolístico, um tipo adoptado pela Rússia, com quem, nos últimos anos, pouco ou nada quisemos ter a ver. Talvez seja difícil percebermos que não foi ele que nos traiu. A traição é nossa. Felizmente não nos guarda rancores. No seu regresso, foi como se nunca nos tivesse deixado.
Talvez um dia, com outro distanciamento, consigamos perceber o que se passou. Agora não há tempo. Pés à obra, meu caro Manélélé. Por mim, está convocado. Daqui a poucos meses, quando regressar da Rússia já campeão mundial, ouvirá Daniel Oliveira perguntar-lhe: “Manuel, o que dizem os teus olhos?” A resposta, a que invariavelmente sai redondinha dos seus pés, é que Manuel Fernandes é só mais um. Mas nós sabemos que não é bem assim.
In Tribuna Expresso

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