sexta-feira, 17 de novembro de 2017

UM AZAR DO KRALJ


Jorge Simão: “Depois da analogia do bar, a minha mulher ligou a dizer que uma amiga lhe tinha dito que eu andava com outra: ‘O que é isso?’”
Uma longa entrevista ao treinador do Boavista, filho de uma professora de português e de um engenheiro, que gosta de Charles Bukowski e de poesia, e se assume fã de Maurizio Sarri, o técnico do Nápoles com quem estagiou durante o desemprego. “Depois do Braga, fiz o meu período sabático. Reciclei conceitos. Se fiz mal em levar três jogadores do Chaves para o Braga? Passemos à frente”.
Nasceu em Pampilhosa da Serra. Como foi parar a Lisboa?
Nasci em Coimbra, mas o meu pai é de uma aldeia de Pampilhosa da Serra. No caminho o meu pai registou-me numa aldeia chamada Janeiro de Baixo. A ligação é esta. Só que as minhas vivências são em Queluz, para onde os meus pais se mudaram quando eu tinha dois anos.
Era bom aluno?
Sim, tinha boas notas. As minhas disciplinas favoritas eram ciências e português, talvez pelo facto de a minha mãe ser professora de português e o pai engenheiro geógrafo. E era reguila, como é óbvio.
Óbvio porquê?
Naquele tempo ia-se para a rua. Na adolescência, dizia a minha mãe: “vou para a rua”. Era normal jogar à bola, andava de skate e bicicleta. Hoje, os miúdos não vão para a rua, estão nas consolas e computadores.
O que queria ser?
Como todos os miúdos da minha idade, queria ser jogador de futebol. Hoje, curiosamente, já não querem ser jogadores, querem ser treinadores de futebol. Pergunto a um miúdo de 15 ou 16 anos o que querem ser, e eles dizem treinador.
Porquê?
Há um pré e um pós Mourinho. Marcou uma era pela sua imagem. Criu o impacto do treinador-estrela, sofisticado, com sucesso lá fora, bem falante, com grandes ordenados. Quando dava aulas, fazia-me confusão que tantos miúdos quisessem ser treinadores.
Quando percebeu que queria mesmo ser treinador?
Já entrei para a faculdade com esse intuito, nunca pensei ser professor de educação física.
Começou a jogar futebol no Estrela da Amadora, Real Massamá e passou a sénior no Massamá.
Sim.
Nunca jogou nos campeonatos profissionais. Falta de jeito?
Acho que tinha algum, era médio. Fiz a formação no Estrela, que era uma boa escola, e a minha passagem a sénior coincidiu com a entrada na Faculdade de Motricidade Humana, em Ciências do Desporto, e não foi fácil conciliar. Entre os estudos e jogar na III Divisão... fiquei dividido.
Deu prioridade à faculdade?
Foi um passo importante, até porque percebi que como jogador não ia chegar muito longe. Dediquei-me aos estudos e a treinar ao início da noite num regime semi-profissional. Aí comecei a ambicionar ser treinador.
Foi adjunto quase 10 anos. Quem foi o treinador que mais o marcou?
É difícil dizer. Todos aqueles com quem trabalhei foram importantes por uma ou outra razão. O que sou hoje é o reflexo das experiências pelas quais passei. Trabalhei com vários, o que não é normal - o normal é seguir o treinador principal para todo o lado.
Um seu jogador em início de carreira disse em off que é distante e um tanto frio no relacionamento com o plantel. É verdade?
É preciso situar no tempo. Como treinador passei por diversas fases e contextos. Sou aquilo que acho que a equipa precisa que eu seja; isto é, mais frio ou mais próximo e carinhoso. Por isso não poso concordar em absoluto com esta análise.
E como é o Jorge no Boavista? Até porque herdou uma equipa já feita...
É diferente. Perceberá que entrar no decurso de uma época é diferente de ter um plantel planeado pela equipa técnica. Não vou dizer que há uma dificuldade maior, é como entrar num comboio já em andamento com diversas carruagens e cadeiras não escolhidas por nós. Se se aceita, é seguir em frente. É como é.
Quando chegou não fez ruturas?
A rutura é inevitável . Não há dois treinadores iguais. Ou seja, mesmo que não se queira, há rutura.
Entrou com o pé direito, esteve quatro jornadas sem perder, até que chegou o FC Porto, equipa contra a qual nunca tinha perdido a jogar em casa. Arriscou demais?
Fizemos um belíssimo jogo até ao segundo golo, por volta dos 80 minutos. Criámos mais dificuldades do que alguma equipa minha o tinha feito. Ao intervalo, com 0-0, falei com os jogadores e senti estava mais perto de ganhar do que nunca. Sentia que estávamos em superioridade em campo e, mesmo a perder, aos 49 minutos, continuámos a mostrar superioridade até aos 80 minutos. E aí fiz alterações...
Descurou a defesa...
Arrisquei para ter a equipa mais atacante e para tentar empatar. Não correu bem. Expusemo-nos demasiado ao poder de ataque que o FC Porto tem. Não correu bem. Claro que o que ficou foi a derrota por 3-0.
Que avaliação faz do VAR? Tem ajudado ou atrapalhado?
Tem ajudado. É uma ferramenta necessária, mas, como todas as inovações, precisa de ser limada e afinada. Não pode, por exemplo, haver falhas de comunicação ou deixar escapar erros grosseiros, como já aconteceu.
Por que demorou tantos anos a dar o salto de adjunto para treinador principal?
Dexei de ser adjunto e fui para treinador no Atlético. Não foram muitos anos. Os neurocientistas dizem que para se atingir um nível próximo da excelência tem de se fazer um trabalho intenso durante dez anos. Apareceram alguns convites mais cedo, mas senti que, como adjunto, estaria num patamar competitivo mais elevado do que se fosse para técnico principal. Preferi ganhar maturidade antes de dar o salto para não falhar. Comecei na II Liga, muito marcante como todas as primeiras experiêncas.
No Campeonato Nacional de Seniores a remuneração é muito diferente da II Liga. Dá para viver com conforto?
Enquanto estive na II B dava aulas de Educação Física, durante nove anos. Fazia grande ginástica e muitos quilómetros. Não tanto pelo salário, mas por segurança de carreira. Como profissional na então II B tinha um ordenado que era mais do dobro do ordenado médio nacional, mas não tinha segurança de carreira. Mas chegou a um ponto em que tive de tomar essa decisão, após esgotar o regime de três anos de licença sem vencimento. Perdi o meu lugar de quadro em Agualva, no Cacém, quando fui treinar o Mafra e ganhar 1700 euros. Fui atrás do meu sonho. A seguir, fui para o Belenenses na reta final da época, que foi o passo decisivo para estar onde estou. O Mafra estava em segundo lugar e subiu de divisão, mas teria tido um percurso mais sinuoso se não tivesse aceite o convite do Belenenses; estava em sétimo lugar para substituir o Lito Vidigal, na perspetiva de aguentar até ao final da época. Só que aconteceu o inesperado, que foi o apuramento para a Liga Europa. A nove jornadas de fim por desgaste na relação entre treinador e a direção. E curisosamente a minha estreia na primeira Liga foi no Bessa. Entrou o Sá Pinto, e fui à minha vida para Paços de Ferreira, para o lugar do Paulo Fonseca que tinha feito a marca inédita de levar o clube ao apuramento da Champions. Lançámos como meta fazer 48 pontos, que foi o que nos guiou durante a época inteira, e ficámos à beira da Europa.
Porque se mudou então para Chaves? Foi uma aposta de risco?
Como quase todas as que tenho feito, depois de 10 anos de cautelas como adjunto. Esse é o desafio. O que me convenceu foi o primeiro contacto que tive com os dirigentes do Chaves. Senti: eles querem-me. Mesmo. E isso é o melhor que o treinador pode sentir. Procuro acima de tudo condições para ter sucesso. Ficou tudo resolvido num almoço muito rápido. O presidente disponibilizou-me tudo para que tivesse uma equipa competitiva para a I Liga.
Não está arrependido de ter ido para o Braga? Deu um passo maior do que as pernas?
Não estou arrependido. Era uma boa oportunidade para mim, o Braga chegou a acordo com o Chaves, e pagou para que eu saísse. Não fui feliz, foi uma fase dura, mas serviu de aprendizagem, até porque foi a primeira experiência negativa que tive. Na adversidade é que crescemos mais. Saí a quatro jogos do fim, fiquei desempregado até ir para o Boavista, mas acabou por ser bom.
Foi um erro levar três jogadores de Chaves para o Braga? Perdeu-se o balneário?
Passemos à frente.
O que aconteceu? Chocou com o presidente?
Não. Não é situação que tenha interesse em falar dela, apesar de ter sido um acordo cordial. Fiz um período sabático, fundamental para esta vida tão absorvente. Estive em Itália, a acompanhar o treinador do Nápoles, Maurizio Sarri. Reciclei conceitos.
Como lá foi parar?
Através de um intermediário amigo.
Os Super Dragões, sempre que vêm jogar ao Bessa, cantam: “Boavista é uma rotunda, o teu lugar é na segunda”. Qual é o lugar do Boavista?
O estatuto de I Liga nunca esteve em causa. A sua passagem pelas divisões secundárias foi extra-desportiva. Estou cá há pouco tempo, mas acho que eu e este clube temos um casamento perfeito.
Para já, o objetivo é a permanência ou a Europa?
Ir à Europa não é o objetivo no imediato, mas será daqui a um par de anos. Acima de tudo, depende da capacidade financeira que se possa ter, dado ainda estar um PER a decorrer.
O fosso entre os clubes grandes e os outros é cada vez maior. O falhanço na negociação dos direitos televisivos agravou o contexto?
Precisamente. Tem muito a ver com dinheiro. É muito raro ter uma tabela classificava no final da época que não reflita o que são as diferenças orçamentais.
Qual o modelo de treinador preferido ou com o qual mais se identifica?
Não consigo dizer. Guardiola, Mourinho, cada um com as suas coisas que admiro. Não sou seguidor de ninguém. O Sarri é o treinador que mais admiro. Tem 58 anos, chegou à I Liga aos 54 anos, foi despedido várias vezes de clubes da II e III divisão, trabalhou na banca...
Por que razão as suas equipas jogam melhor contra os grandes?
Não concordo. Julgo que se pensa isso porque ganhei algumas vezes aos grandes, como esta época ao Benfica, e no Chaves ao Sporting e FC Porto, que são jogos mais mediáticos. Acho que é a única coisa de que se vão lembrar. Ainda há pouco num restaurante vieram dizer-me: “Estou chateado contigo, ganhaste ao meu Benfica”. Parece que não fizemos mais nada durante a época. O ano passado ganhámos ao FC Porto, demos o campeonato ao Benfica, e é a única coisa de que se lembram.
Os portistas dizem que o Boavista já desempenhou a sua função, que foi ganhar ao Benfica.
Lá está.
As suas equipas são faltosas. É uma estratégia de jogo?
É um aspeto estratégico.
Então calha bem, porque o Boavista ganhou a marca de equipa dura desde Jaime Pacheco.
Mas, se formos ver o número de faltas, não estamos no top 5 da Liga. A questão não está no número de faltas, mas na qualidade das faltas, os momentos em que se cometem. É mais imprtante do que fazer muitas. É um aspeto estratégio que nenhum treinador descura. Faz parte do jogo.
O que acha da política de empréstimos: é uma forma de os grandes controlarem o futebol português?
As equipas mais pequenas, para terem jogadores de nível que a sua capacidade financeira não permite, têm de ter jogadores emprestados. Por outro lado, o facto de os grandes recrutarem todos os jogadores que se distinguem nas outras equipas, mesmo não contando com eles para a equipa principal, enfraquece os adversários e permite-lhes terem jogadores para semearem noutros clubes, com o que isso tem de perverso por condicionar as restantes equipas.
Que não podem jogar com os jogadores dos clubes-mãe..
Não só isso, os clubes ficam condicionados. Para além de não jogarem, são os muitas vezes os jogadores mais influentes e ficam condicionados
O Boavista tem quantos?
Tem dois nestas condições. O Léo e o Rui Pedro, emprestados pelo Sporting e FC Porto.
Gosta de ouvir música e de ler?
Gosto de música mas prefiro ler. Houve uma fase em dediquei muito do meu tempo a livros de ex-treinadores de basquetebol. Na minha ótica, são aqueles especializados na liderança e motivação de equipas. Um livro de Phil Jackson. O Michael Krzyzewski, outro treinador de colégios norte-americanos. Para além de um outro romance, como Charles Bukowski, e até poesia. Hoje em dia, dedico muito tempo a livros técnicos de futebol, escritos por treinadores de futebol.
Sempre foi vaidoso? Usa sempre gel e anda no dia a dia de fato completo ou excecionalmente, quando dá entrevistas?
Só uso fato completo em algumas ocasiões, mas admito que sou vaidoso. Não é nenhum defeito. Aprendi neste meio que a imagem pesa mesmo muito. A questão do gel no cabelo... quando comecei a ser treinador da I Liga tinha amigos com muitos anos de futebol que me disseram que tinha de cortar o cabelo. Sempre tive o cabelo comprido, e só usava gel quando jogava. Há dois adjetivos que me puseram quando comecei a aparecer: arrogante e vaidoso. O ser vaidoso tem a ver com o gel; o ser arrogante está associado à forma como comunico muito galvanizadora, com os gestos e por abanar com a cabeça.
Foi muito gozado depois da analogia da posse de bola e da rapariga que se escapuliu com outro após horas de conversa no bar?
Nessa conferência contei a história toda, mas o que foi utilizado foi só uma parte. No fim digo que essa história não é minha, foi contada pelo selecionador argentino Sampaoli, que perdeu por 3-0 quando teve 70% de posse de bola. Ouvi esta história há uns anos e achei curiosíssima porque é algo com que me identifico. Contei-a quando fui confrontado com a importância da posse de bola para justificar que a posse de bola é irrelevante, quando o que interessa é o resultado do jogo. Ter muita posse de bola e perder por 3-0 não interessa. Bom, mas nesse dia, recebi um telefonema da minha mulher a dizer que uma amiga que tinha dito que eu tinha saído com uma rapariga. “O que é isso?” Lá tive que explicar...
Tem filhos?
Um miúdo de três anos que já dá uns pontapés valentes com o pé esquerdo. E anda todo contente lá em casa com a camisola do Boavista.
A famíla está a viver no Porto?
Em Lisboa. A minha mulher é advogada e tem lá a carteira de clientes. Mas adoro o Porto.
Como evoluiu enquanto treinador?
O meu processo de treino é, agora, muito mais cuidadoso. Dou mais atenção aos detalhes. Nos quatro meses que estive sem treinar dormia oito horas; desde que cheguei ao Boavista nunca mais dormi sete horas seguidas.
Dorme melhor antes ou depois dos jogos?
Antes, durmo perfeitamente, depois é muito pior. Seja qual for o resultado é horrível. Há uma descarga, tudo a circular cá dentro a 200 km/hora. Pior ainda se o resultado for mau.
Quais são as rotinas?
Acordo muitas vezes a meio da noite, completamente desperto, sempre a pensar em exercícios, com quem devo falar, o que vou dizer. Temos o pequeno-almoço até às 9h, treinamos às 10h30. Antes do treino, temos sessões de vídeo e aproveito para falar com alguns jogadores, outros também fazem programas de prevenção no ginásio. Depois almoçam e fazem o treino de tarde, que é descansar. Descansar faz parte do treino, dormir a sesta. Na verdade, os jogadores são pagos para dormir. Há quem diga os jogadores trabalham pouco, só treinam 1h30 por dia, comigo nem isso, são treinos de 60/70 minutos. Descansar faz parte desta profissão, o corpo é a ferramenta, que tem de estar fresquinho, limpinho no dia a seguir. A equipa técnica almoça aqui, e ficamos até ao fim do dia a preparar as coisas. Filmamos o treino, analisa-se o que se fez, o que pode e não acontecer, como gerir as cargas de esforço e o que se quer aconteça no próximo jogo.

In Tribuna Expresso

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