quinta-feira, 14 de junho de 2018

“À FLOR DA RELVA” OU SER PESSOA, EM JOSÉ NETO


“À Flor da Relva”, editado pela prestigiada Prime Books. é o novo livro do Doutor José Neto. E, tendo em conta que se trata de um estudioso de grande originalidade e seriedade, um livro que os desportistas devem ler, saborear, meditar. De facto, o Doutor José Neto, na esteira do seu Mestre, José Maria Pedroto, bem cedo encontrou a chave de entrada para a complexidade das múltiplas facetas em que o futebolista, em regime de alta competição, se desdobra: antes do atleta, está o homem (ou a mulher). Daí que, para preparar uma equipa de futebol, não basta a “periodização tática”, mas a “periodização antropológica e tática”, pois que ser jogador de futebol é, antes do mais, ser pessoa. E ser pessoa é ser corpo e alma e sentimento e natureza e sociedade e cultura. A médica norte-americana, Hanna Damásio, mulher de António Damásio, o célebre médico neurologista português, em entrevista à jornalista Clara Ferreira Alves (revista do Expresso, de 2017/10/28) afirmou: “Tens de ver os sentimentos como sendo os motivadores de tudo o que constituímos culturalmente. Uma das coisas contra as quais nos erguemos é a da construção do puro intelecto, como força e poder computacional. Algoritmos. Não é verdade. Parte da ciência e, definitivamente, a tecnologia estão a seguir esse caminho”. E, mais adiante, retoma o tema, com perfil rápido e incisivo : “Não podemos criar sentimentos nos robôs. É impossível. Estamos absolutamente certos disso. É impossível. Porque os sentimentos, tal como acontece com todos os aspetos da mente, são gerados por um arranjo cooperativo e interativo entre os sistemas nervosos e o corpo em geral”. Gabriel Marcel, no seu célebre Être et Avoir, assume uma curiosa posição: “deste corpo, eu não posso dizer, nem que ele sou eu, nem que ele não sou eu” (p. 12). Ele é uma zona fronteira, entre o ser e o ter. Talvez devamos dizer: a pessoa não é uma alma encarnada, mas um corpo que se faz espírito.
E, porque é um corpo que se faz espírito, a importância do novo humanismo que ressalta dos escritos de todos os autores, de todos os estudiosos, que já concluíram que a prática desportiva pode ser de uma importância fundamental à saúde e à educação das pessoas e portanto à transformação das sociedades. O Doutor José Neto, nesta era da “pós-verdade”, que anda paredes meias com a mentira, é um destes estudiosos em que se pode confiar porque, mesmo na alta competição desportiva, ele luta pela Ciência e pela Consciência, pela Verdade e pela Justiça. O Desporto surge, sempre, incompleto, defeituoso, já que a sua matéria-prima são as pessoas com todas as suas fragilidades, designadamente a autocracia e o populismo. O Desporto, como o altamente competitivo, que reproduz e multiplica as taras do neoliberalismo dominante, não é moral, nem imoral – é amoral. Não é contra, nem a favor, da moral - esquece-a. Faltam, por isso, homens como o Doutor José Neto, sempre de voz clamorosa e ardente, em prol daqueles valores, sem os quais não há Desporto. E já como uma obra escrita que merece respeito, estudo e aplauso. À Flor da Relva, o seu novo livro, começa com José Maria Pedroto, que o escolheu para um dos seus adjuntos. Recordo que, um dia, nas nossas conversas quinzenais, eu citei ao Sr. Pedroto uma frase, que me parece muito feliz, de Paulo Bourget: “É preciso viver como se pensa, sob o perigo de se acabar a pensar como se vive”. E recordo ainda a rapidez com que ele a escreveu num papel e a guardou no bolso. José Neto não esconde que foi precisamente com Pedroto que mais aprendeu de futebol, fazendo do Sr. Pedroto o seguinte retrato: “uma personalidade magnética e liderante, no saber e no fazer. Ajudou-me a encontrar as respostas adequadas no tratamento do jogo para o treino e do treino para o jogo e o que dele emergia” (p. 23).
Homenageia ainda, com palavras sentidas, o Professor Manuel Puga, um cavalheiro de irrepreensível conduta, que eu conheci, era ele delegado, no Porto, da Direção-Geral dos Desportos. E, bem me lembro, um homem culto, que sabia pensar o Desporto, quero eu dizer: produzia saber pela mediação da reflexão. José Neto analisa, com rigor, o fenómeno das “chicotadas psicológicas” e assim escreve, a propósito: “As causas inerentes às célebres Chicotadas Psicológicas confinam-se, em primeira instância, aos maus resultados, sendo estes passíveis de gerar a insatisfação dos adeptos, dos diretores e dos próprios jogadores, visualizando-se um ambiente adverso, quer no balneário, quer fora do mesmo, instalando-se uma crise de identidade coletiva comprometedora e gerando-se a substituição do treinador, nem sempre explicada à luz das verdadeiras causas”. E, no percurso lógico deste tema, ele levanta as questões seguintes: “Haverá necessidade de equacionar um perfil ideal para um treinador? Saber muito de técnica e de tática é uma condição necessária para se ser um bom treinador? A experiência , como jogador de alto nível, torna-se fundamental para se assumir como treinador mais preparado para o sucesso? A história e a tradição dum clube, bem como a cultura e exigência dos seus diretores, associados e adeptos, implicam a contratação dum treinador, com um perfil especial?” (p. 38). Merecem depois o interesse do autor o planeamento e periodização do treino e sua importância para o futuro de uma equipa, na construção do sucesso; o talento do jogador português; a arte de comunicar, tão necessária ao treinador de futebol; e um tema de flagrante oportunidade: as equipas mais felizes ganham mais vezes”, onde o homem-máquina do racionalismo deixou de ter lugar, na prática desportiva, mormente no alto rendimento; as lesões, em que José Neto se especializou e deu apoio a médicos de enorme estatura científica…

Na recuperação física e psicológica de atletas lesionados, tem o autor deste livro uma palavra a dizer, dado que contribuiu iniludivelmente à recuperação do João pinto, do Jaime Pacheco, do Eurico, do Jaime Magalhães, do saudoso Zé Beto, do Futre, do Fernando Gomes, do Chalana e de tantos, tantíssimos mais. O árbitro e o julgamento do jogo; a qualificação do treino do Árbitro, os testes físicos e as estratégias de intervenção; um adeus sentido a Paulo Paraty; o Euro 2016 e a inolvidável vitória da bandeira lusitana; os Jogos Olímpicos e Paralímpicos; uma aula-conferência no auditório do Museu do Dragão; Cabo Verde e uma viagem inolvidável, dando especial realce à figura do escritor e jurista Doutor Jorge Carlos de Almeida Fonseca, atual Presidente da República de Cabo Verde, um homem que tem a superior compleição dos que pairam alto e nos obrigam a levantar os olhos, para os vermos. Enfim, ainda noutros temas mais se alongou, incluindo a minha modesta pessoa, o Doutor José Neto, neste livro só possível a um intelectual de superior cultura desportiva e um comunicador de fervilhante e brilhante vitalidade. Cada palavra do livro À Flor da Relva tanto parece integrar um texto de filosofia, como um verso que se dirige ao coração dos leitores, mas onde a ética não é marginal. A mesma veneração que o Doutor José Neto sente pelo conhecimento científico produziu, há quase 200 anos, o naturalismo e o positivismo e o cientismo. No entanto, apesar do progresso civilizacional indiscutível, nem sempre é visível, designadamente no espetáculo desportivo, uma filosofia suscetível de converter-se numa prática emancipatória. Ora, o que domina as obras do Doutor José Neto é precisamente um esforço para que a objetividade científica, no Desporto, nunca deixe de ter a informá-la, a orientá-la uma filosofia humanista. Que mais será preciso dizer, para que o livro À Flor da Relva seja lido, com atenção, e estudado, com rigor, e (no meu caso pessoal) aplaudido com emoção?

Manuel Sérgio, in a Bola

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