"Canolas foi o gordo que se recusou a ir à baliza e criou, no meio-campo, um lugar bonito para viver. Foi do Benfica num tempo em que era tão difícil jogar no Benfica. Mas, sobretudo, foi um daqueles que eram de todos nós.
Otto Lara de Resende, um daqueles cronistas de mão-cheia que no Brasil surgem às mãos-cheias, sempre que se referia a uma personagem fascinante, sublinhava: 'Uma figura! Uma figura!'
No dia 3 de Novembro de 1966, o Benfica defrontou a Ovarense para a Taça de Portugal. Preparando uma sonora viagem ao Iraque, daquelas viagens que fizeram da águia uma proprietária dos sete céus, tratou de fazer alinhar uma equipa mais, assim, como direi, para resolver o problema do imediato. Ora vejam: Abrantes; Severino, Malta da Silva, Paula e Augusto Silva; Carmo Pais e Ferreira Pinto; Yaúca, Camolas, Vieira e Diamantino.
Camolas: 'Uma figura! Uma figura!'
Ou melhor: estava para se transformar uma figura.
Nesse dia exacto vestiu pela primeira vez a camisola do Benfica. Ficou dois anos. Foi duas vezes campeão mas não jogou muito. Pudera! E Eusébio e Coluna e Simões e Torres e Jaime Graça?
O Benfica já tinha ido a Ovar, na primeira mão, vencer por 6-0.
Ora, batatas! Aquilo era só mesmo para cumprir calendário.
Mas ficou marcado para sempre na vida de Camolas. E ele bem o mereceu. Porque Camolas tornou-se um daqueles nomes que o futebol português jamais esqueceu, agora e na hora da sua morte.
Planetas em seu redor
Camolas pode ter sido José Carlos da Silva, mas ninguém quis alguma vez saber disso senão os pais ou a restante família. Foi Camolas e será Camolas para sempre.
Acho que assisti a um dos últimos jogos da carreira de Camolas. Não acho, tenho a certeza. Foi em 1987, salvo erro no campo do Almada, estava ele no Palmelense, clube da sua terra. Pouco se mexeu. Era o astro-rei, e todos os outros realizavam em seu redor movimentos de translação.
Camolas sempre foi um tipo forte, entroncado de pernas grossas e pescoço curto. Nessa tarde fiquei com a sensação de que possuía, como se ditado por uma lei da natureza, a base do princípio de Newton que diz que matéria atrai matéria na razão directa das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias.
Ele atraía a bola e a atenção dos companheiros.
Em seguida, num passe certo, os planetas voltavam a mover-se em redor do sol e na rotação de si próprios.
Nunca vi Camolas jogar no Benfica, mas vi-o, sobretudo, com a camisola do União de Tomar.
Que equipas incríveis teve o União de Tomar! Os nomes explodiam no firmamento como personagens de Alves Redol: Conhé, Kiki, Caló, Faustino, Barnabé, Bolota, Manuel José, Pavão, Totói, N'Habola, Bilreiro...
E Camolas. Acima de todos, Camolas.
Curioso que tanto Eusébio como Simões tenham vindo a reencontrar Camolas, cerca de dez anos mais tarde, em Tomar.
Nessa altura, Camolas parecia um revolucionário da Sierra Maestra: cabelos longos que não escondiam as entradas largas da testa, barba comprida e hirsuta.
Desde início que quem olhava para Camolas não adivinhava nele um jogador de futebol. Fernando Riera viu mais longe do que os outros. Ele foi jogador de futebol e por inteiro.
Saiu para o Varzim e fazia golos. Tinha um pontapé potente saído de uma massa muscular impressionante.
Saiu para o Belenenses e foi sendo cada vez mais Camolas.
Saiu para o União de Tomar e foi o Camolas.
De repente, a morte, essa sinistra senhora da gadanha, veio buscá-lo e levou-o para os campos de gipsofila onde as papoilas não saltitam. Cobarde como é, não lhe poupou sequer os sofrimentos.
Camolas, para mim, será sempre uma figura! Uma figura!
Fez parte da minha adolescência como a bola que corria na nossa frente ao Campo da Feira, em Benavente. Sabíamos todos quem era o Eusébio e o Pelé, e até o Yazalde e o Jairzinho. Mas o Camolas era dos nossos. O gordo que se recusou ir à baliza e fez do meio-campo um lugar bonito para se viver."
Afonso de Melo, in O Benfica
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