terça-feira, 14 de julho de 2020

QUANDO O DUENDE TOMOU CONTA DE JULINHO


"Era Lorca que falava da arte e do duende. Nessa tarde de Abril de 1947, o Benfica desfez a Sanjoanense por 13-1 numa ventania pintada de vermelho. Por entre todos os que estavam em campo, havia um homem a lutar para além de si própria. Cada golo seu brotava em flor. Foram seis!



Ah! Que tarde! No Campo Grande homenageava-se o falecido Álvaro Gaspar com o descerramento de uma placa.
A malta viera contente. Um dia ameno. Nada fazia fazer a tempestade que se desenrolou sobre o relvado: esperava-se apenas a natural vitória benfiquista e nada mais. O adversário não estava à altura. Era a Sanjoanense.
Havia, entre os encarnados, um que tinha duende. Sabem do duende, de Garcia Lorca? Esse duende que nenhuma filosofia explica. «O maravilhoso cantor El Lebrijano, criador da Debla, dizia: 'Nos dias que canto com duende não há quem possa comigo!' (...) Eu ouvi um velho violinista dizer: 'O duende não era na garganta; o duende sobe por dentro a partir da planta dos pés'».
Nessa tarde o duende estava nos pés de Júlio Correia da Silva, o Julinho. No primeiro minuto marcou um golo. 'Esse poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica e é, em suma, o espírito da terra, o mesmo duende que abraçou o coração de Nietzsche que andava à sua procura sobre a Ponte de Rialto'.
Se há algo de maravilhoso na história da literatura, isso é a Teoria e Prática do Duende.
E Julinho com o duende dentro dele, subindo a partir da planta dos pés.

Sorridos de sol
Julinho era de uma valentia, de uma generosidade e de um empenho sem limites. Nestes dias de hoje em que vemos treinadores agradecerem o empenho de homens que ganham fortunas obscenas, Julinho cuspiria para o chão, arregaçaria as mangas e diria: 'Vou mostrar-vos o que é empenho e vontade e ganas de lutar pela vitória até cair para o lado de exaustão'. Era assim o homem que nasceu em Ramalde e chegou ao Benfica em 1942 para ficar na memória dos benfiquistas para todo o sempre.
Nessa tarde estava ladeado de gente tremenda: Espírito Santo, Rogério, Arsénio e Baptista. A Sanjoanense tinha um guarda-redes chamado Barbosa. Pobre Barbosa, coitado! E coitados dos defesas à sua frente: Joaquim, Costa Leite e Santa Clara. Foram arrastados pelo tufão dominado pelo duende.
Aos 5 minutos, Arsénio fez 2-0. Depois Julinho, aos 6 e aos 14, marcou mais dois. Ao quarto de hora já tinha assinado um hat-trick.
O povo deixava-se encantar. 'Todo o homem, cada degrau que sobe na torre da sua perfeição é às custas de luta que trava com o duende'. Julinho e o duende entraram num baile macabro, diabólico. Uma dança selvagem por entre as camisas negras dos jogadores de Sanjoanense.
Uma avalancha! E todos, no final, de acordo: se tivessem querido desfazer por completo os seus adversários, humilhá-los e destratá-los, os encarnados teriam marcado vinte golos. Mas havia um cavalheirismo intrínseco. Lutava-se por cada milímetro do campo, mas com honradez. Não se desgraçava um opositor ferido, triste, cabisbaixo. O Benfica podia muito bem ter marcado vinte golos, mas marcou apenas treze: 13-1 com seis golos de Julinho.
Barbosa, na baliza, era de uma fidalguia digna de um grande de Espanha. Como se enfrentasse um touro a mãos nuas. Estava numa ponta do campo, mas estava, ao mesmo tempo, no centro da arena. E David marcou um golo heróico, aos 23 minutos, impedindo os nortenhos de ficarem a zero.
Arsénio também fez um hat-trick: 13, 60 e 72 minutos.
Rogério Pipi marcou dois: 66 e 77 minutos, este de penálti.
Baptista, o Vítor, também dois: 49, 83 minutos.
Julinho concluiu o seu pacto com o duende aos 30, 53 e 65 minutos.
Muita gente, nas bancadas do Campo Grande, baralhava-se com as contas. Era natural. Havia golos a chover de todo o lado, e os dedos de duas mãos não bastavam para contá-los. Outros ficavam de olhos pregados na ferocidade de Julinho, embasbacados, queixo caído até ao externo, as palmas doridas de tanto estralejarem.
A musa do avançado soprava forte. Um redemoinho incontrolável arrastava consigo opositores desesperados.
Gritos de exclamação soltavam-se inesperadamente de gargantas já roucas. Havia quem assistisse a algo de único. Os próprios companheiros de Julinho alargavam as passadas para conseguir acompanhar o seu ritmo irresistível. O duende ouvia-se ao longe com um toque de violino de cordas esticadas, prestes a rebentar. O duende tomara conta do homem a partir da planta dos pés, como mandava Lorca, e o homem ia para além de si próprio nessa luta infinita que conduz à simplicidade da arte.
Não, nada conseguiria parar Julinho nessa tarde de 27 de Abril de 1947. Os golos brotavam-lhe a imaginação como flores. Tomado por uma sensação incrível de liberdade, soltou-se para lá das fronteiras dos números e da aritmética. Cada golo seu foi uma mensagem de alegria. E o povo, feliz, sorria daqueles sorrisos que se transformam em espelhos do Sol..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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