"Quando o meu nome entra no comunicado
Há muito que aprendi uma regra simples para sobreviver e, sobretudo, para continuar a divertir-me numa atividade de que tanto gosto, neste ecossistema tão peculiar que é o futebol português: não ler tudo, não reagir a tudo, não viver a medir-me pelo que dizem de mim.
Enquanto comentadores de arbitragem, habituamo-nos a ser alvo de apreciações que raramente se limitam ao futebol. Muitas vezes são o reflexo de uma lente clubística. Aquela “clubite” que distorce o que se vê, o que se ouve e, principalmente, o que se quer acreditar. E, dentro de certos limites, isso faz parte do jogo mediático e do ruído semanal.
Mas há uma diferença enorme entre o ruído e o registo formal. Entre a opinião solta e um comunicado institucional assinado por uma direção de um clube, em que um nome é vinculado a uma estrutura federativa sem que se dê o contexto completo. Aí, o silêncio pode ser interpretado como confirmação, conivência ou, pior, como ausência de ética. É por isso que desta vez escrevo sobre o tema. Não para atacar ninguém, nem para alimentar guerrilhas, mas para pôr as coisas no lugar certo: o da verdade e o da clareza.
O que foi, afinal, essa “comissão não permanente”
O comunicado emitido pelo FC Porto refere o meu nome como integrando uma “Comissão Não Permanente de Arbitragem” da Federação Portuguesa de Futebol. A formulação, por si só, é suficientemente vaga para gerar interpretações erradas: desde a ideia de que desempenho funções regulares, até à suspeita de influência em avaliações, critérios ou decisões técnicas. Há, assim, que esclarecer.
O meu envolvimento resumiu-se a três reuniões online. Três. À distância. Sem qualquer remuneração. Sem vínculo contratual. Sem qualquer papel executivo. Sem qualquer responsabilidade operacional. Fui convidado, como um dos “peritos” indicado pelos delegados que votam na Assembleia Geralda FPF, a dar a minha visão sobre dois temas muito concretos: Recrutamento e retenção de árbitros (como atrair mais gente e como evitar que se perca quem entra) e Modelos de governança da arbitragem profissional (incluindo aqui a reflexão sobre o que poderia ser, um dia, uma entidade autónoma para gestão da arbitragem profissional)
Foi isto. Nem mais. Nem menos.
Aceitei o convite de forma natural e desassombrada por uma razão simples: sinto que devo contribuir para a causa da arbitragem para lá do comentário ao lance do fim-de-semana. Devo-o à arbitragem — que me deu formação, carácter, disciplina e uma escola de vida — e devo-o a mim próprio, enquanto alguém que não gosta de ficar apenas na crítica sem, quando surge oportunidade, ajudar a construir.
O meu lugar: fora das estruturas
Desde que deixei a arbitragem no ativo, a minha vida profissional seguiu o seu caminho, com a minha atividade principal na área do marketing desportivo. Em paralelo colaboro com a comunicação social, atualmente com a Sport TV e com o jornal Record, num contexto remunerado e assumido.
E qual é, para mim, o sentido dessa colaboração? Não é “marcar pontos” para ninguém. Não é ser porta-voz de ninguém. É, antes de mais, tentar fazer duas coisas que considero essenciais e que raramente são feitas com serenidade: Humanizar a arbitragem (lembrar que há pessoas, decisões em segundos, pressão real e falibilidade humana); Ajudar a esclarecer as Leis do Jogo, a sua interpretação e a sua aplicação — com o máximo rigor possível e com a máxima independência possível.
Essa independência, para mim, apenas uma palavra bonita. É método. É postura. É limite. E, talvez por isso mesmo, ao longo dos anos, tenho-me afastado de contextos formais dentro da estrutura da arbitragem nacional. Por opção járecusei cargos e funções precisamente porque gosto desta posição mais isolada, em que não respondo tecnicamente a nenhuma estrutura e em que apenas o meu conhecimento, o meu critério e a minha ética me condicionam.
Dito isto, ser independente não é ser indiferente. E ser livre não é ser inútil. O facto de eu preferir não estar “dentro” não significa que não possa, pontualmente, contribuir “de fora” quando me pedem opinião sobre temas estruturais. Aliás, já o fiz no passado, noutras circunstâncias, com outro Conselho de Arbitragem, ajudando a produzir documentação técnica usada em formação dos árbitros. Sempre em regime voluntário. Sempre sem contrapartidas. Sempre sem que isso tivesse qualquer impacto no que digo, no que escrevo ou no que analiso publicamente.
Confundir participação com influência é um erro — e alimenta o problema
Percebo o contexto em que o comunicado surge. O futebol português vive, muitas vezes, em estado de guerrilha: cada jornada é um capítulo, cada lance é uma arma, cada suspeita é uma manchete. E quando a arbitragem entra, como infelizmente quase sempre entra, instala-se a tentação de procurar culpados, redes, conspirações e explicações que nem sempre correspondem à realidade.
Mas há um risco grande em misturar planos. Uma coisa é discutir modelos, reformas, transparência, comunicação e tecnologia na arbitragem. Outra coisa é sugerir, directa ou indirectamente, que pessoas convidadas a participar em reflexões têm influência sobre decisões competitivas.
Eu não tenho. Nunca tive. Não faço nomeações. Não avalio árbitros. Não defino classificações. Não condiciono critérios. Não estou numa sala a decidir o que quer que seja sobre jogos ou competições. A minha participação foi exatamente o que acima descrevi: três conversas para pensar o futuro, não para mexer no presente.
E é aqui que me permito uma nota que não é ataque — é princípio: quando um nome é colocado num comunicado sem contexto completo, cria-se um ruído que não esclarece nada e apenas empurra o debate para o terreno da suspeição. Ora, se há coisa de que o futebol português não precisa é de mais suspeição. Precisa, sim, de melhores processos, melhor comunicação, melhor formação, melhor tecnologia e melhor cultura desportiva — de todos os lados.
A ética não se proclama: pratica-se
Não vou entrar em guerras, nem em acusações, nem em contra-comunicados. Não é o meu estilo e, francamente, não é a forma como acredito que se melhora o futebol. O que posso fazer, e é o que faço aqui, é assumir com clareza o meu papel e os meus limites. Sou comentador. Sou analista. Sou cidadão interessado.
Sou ex-árbitro. E sou alguém que, quando convidado a dar uma opinião sobre temas estruturais, não tem nenhum problema em fazê-lo, desde que isso não ponha em causa a minha independência. E não põe.
Porque a independência não se mede pelo facto de ter estado em três reuniões online. Mede-se pelo que digo quando ninguém gosta do que digo. Mede-se pela coerência ao longo do tempo. Mede-se pela capacidade de apontar erros onde eles existem, seja de que cor forem as camisolas envolvidas. E mede-se pela recusa em alinhar em lógicas de trincheira.
Para terminar, o essencial
Escrevo isto para evitar mal-entendidos e julgamentos errados. Para que fique claro que o meu nome, ali colocado, pode sugerir uma pertença e um poder que não existem. E escrevo também porque acredito que há uma saída para este ciclo de desconfiança: não é com mais ruído, nem com mais insinuações, nem com mais campanhas. É com reformas bem desenhadas, critérios mais claros, tecnologia mais homogénea, pedagogia constante e — isto é o mais difícil — uma cultura coletiva que aceite que o futebol se melhora com exigência, sim, mas também com responsabilidade.
A arbitragem tem de ser melhor.?E o futebol português também — dos clubes aos dirigentes, dos jogadores aos treinadores, dos adeptos aos comentadores, passando por todos os agentes que, directa ou indirectamente, o fazem e o influenciam.?Porque a credibilidade não se constrói apenas de um lado: constrói-se (ou perde-se) no comportamento de todos.
Da minha parte, continuarei a fazer o que sempre fiz: analisar, explicar, criticar quando for caso disso, elogiar quando for justo — e manter-me, como sempre, livre de donos e de alinhamentos."
Jorge Faustino, in Record

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