quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

CRÓNICA DE LEONOR PINHÃO


Os precipitados gatos-pingados do regime

Texto:

De Samora Machel, que foi líder da resistência moçambicana ao colonialismo português e, mais tarde, presidente da jovem república africana, conta-se que, numa conversa com jornalistas ocidentais, a uma paternalista questão ideológica com que insistentemente o confrontavam, “quando é que leu Marx pela primeira vez?”, a todos respondeu de sorriso aberto com um desconcertante “eu nunca li Marx pela primeira vez”.
Quando Eusébio morreu, no princípio do ano, perguntaram-me algumas pessoas, com toda aquela naturalidade advinda da circunstância, se me lembrava da primeira vez que tinha visto jogar o melhor jogador português de todos os tempos, no seu tempo.
Na verdade, não me lembro. Nunca vi jogar Eusébio pela primeira vez.
A culpa é do Coluna. E do meu avô também. Foi ele quem me levou pela primeira vez ao Estádio da Luz. É agora importante dizer que o meu avô quando alguém referia, ou ele próprio mencionava, o nome de Coluna logo se punha em sentido como nunca o vi fazer, nem parecido, perante o nome de mais ninguém. 
E tratava-se, o meu avô, de um homem que viveu interessadamente e tomando partido o tempo da monarquia, do regicídio, da I República, do Estado Novo e da II República (chamo-lhe assim, II República, para não me acusarem de meter fruta em tudo). Com tanto príncipe, rei, pedreiro-livre, caudilho, presidente do concelho, autoridade eclesiástica e militar, ministros a rodos, comissários, etc… etc…que conheceu, pois só vi o meu avô pôr-se em sentido quando soava o colossalmente melodioso nome de Mário Esteves Coluna. 
Foi assim que entrou na minha vida o monstro sagrado.
Portanto quando fui pela primeira vez ao Estádio da Luz foi para a ver jogar o Coluna e não foi para ver jogar o Eusébio. Se jogou, juro que não me lembro. Ainda não o tinha decorado.
Lembro-me, e bem, do lugar no estádio em que me sentei, da bonita tarde com um sol criador que, no seu ocaso, fazia tombar sobre o relvado as sombras monumentais das torres de iluminação. E só isso era um espectáculo arrebatador. 
Lembro-me também do meu avô a ralhar com um homem porque o viu atirar ao chão o invólucro de um rebuçado. “O senhor faz isso em sua casa?” Imagine-se, portanto, o género de exigências do meu avô.
Fixa o Coluna, disse-me assim que o jogo, que era com o Belenenses, começou e eu fixei. Por isso lembro-me muito bem da primeira vez que o vi jogar. Lembro-o possante numa corrida desenfreada sobre a direita, num ombro-a-ombro com um jogador de azul que não demorou a ficar para trás. 
Tinha 9 anos e foi isto o que guardei da primeira ida à Luz. 
O Coluna, o meu avô, as sombras das torres caindo sobre o relvado, o homem que atirou para o chão o papelito do rebuçado e eu. Saí de lá encantada com tudo. E assim me mantenho
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Na segunda-feira à noite, na Luz, foi bem mais empolgante o resultado do que a exibição. E o resultado foi um tangencial 1-0 não muito especialmente sofrido, valha a verdade. A exibição foi na linha das anteriores. Isto é, segura sem deslumbrar. Este ano temos um Benfica à italiana. Eu gosto.
Do Benfica do passado recente, com um futebol a oscilar entre o mirabolante e o desguarnecido, entre a nota artística e o chumbo final, saiu, finalmente, um Benfica mais esperto. Pois que assim se mantenha, esperto e desperto.
Querem notas artísticas? Nesta temporada é uma nota artística por jogo e basta. 
Foi o que aconteceu com o Guimarães. O “teenager” Markovic encarregou-se de fazer o seu número e em poucos segundos o jogo ficou resolvido. Antes e depois foi o costume, o costume recente. Um Benfica sem dúvida mais crescido mas frequentemente complacente com as situações do jogo.
Se forem com esta complacência toda jogar ao Restelo, no domingo temos o caldo entornado. Adivinha-se uma casa cheia em Belém. O Benfica não é a alegria das secretarias da Liga mas é, sem dúvida, a alegria das tesourarias dos clubes da Liga.
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A semana foi repleta de acontecimentos invulgares. E, de um modo geral, os analistas e comentadores chegaram todos às mesmíssimas conclusões. 
O Sporting reforçou a sua candidatura ao título e o FC Porto abdicou da candidatura ao título – foi a primeira conclusão da semana.
As imagens da SAD portista, com Pinto da Costa à cabeça das hostes, no túnel do Dragão fazem prova do fim de um regime – foi a segunda conclusão da semana.
Precipitaram-se, na minha opinião, os analistas.
É certo que o desaire com o Estoril promoveu uma troca de lugares no topo da tabela. O Sporting subiu para o segundo posto e o FC Porto desceu para o terceiro posto. Mas como pode ser o Sporting (em festa) mais candidato do que o FC Porto (destroçado) quando ainda faltam tantas jornadas e sendo a distância que os separa do líder quase igual? 
E sabendo-se que o actual líder se especializou nas duas anteriores edições da prova em desperdiçar infantilmente vantagens de monta.
Por que razão, política ou administrativa, são intransponíveis os 7 pontos de atraso do FC Porto para o Benfica e são transponíveis os 6 pontos que separam o Sporting do Benfica? E são 6 pontos visto que o Benfica e Sporting já jogaram duas vezes e em caso de igualdade pontual à última jornada o desempate favorece os da Luz que empataram em Alvalade e ganharam na recepção ao rival.
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No que diz respeito à disparatada conclusão quase unânime de que está para cair o “statuos quo” que fez furor nas últimas três décadas do futebol português, manifesto também o meu profundo desacordo com os precipitados gatos-pingados do referido regime.
Entenderam todos, vá lá saber-se porquê, que os sinais dados por Pinto da Costa e companhia à saída do estádio são de inexorável decadência. Fatal engano. Os sinais não são de queda. 
São antes, e em flagrante, os sinais da ascensão do regime: 
A desautorização da autoridade, a passividade encolhida da dita autoridade no momento do safanão, o confronto belicoso com o repórter que se atreveu a colocar uma questão obrigatória podem, como é da tradição, não merecer qualquer tipo de reparo quer do Ministério da Administração Interna quer do Sindicato dos Jornalistas, mas não podem, de maneira nenhuma, fazer prova da decadência quando são prova da velha e consabida origem e ascensão.
Em que difere a tirada “os ratos é que abandonam o navio” proferida por Pinto da Costa na recentíssima noite de 23 de Fevereiro de 2014 da tirada “os ratos fogem a sete pés” proferida por Pinto da Costa a 25 de Março de 1982 no preciso momento em que viu consubstanciada a sua vitória política e administrativa sobre Américo de Sá, o presidente deposto à má-fila?
Ratos, sempre ratos.
Poderão replicar-me dizendo que nos velhos tempos do regime jamais seria permitida a presença de câmaras à saída do túnel do Dragão. Mas coisas dessas já não são possíveis. Mudaram-se os tempos e hoje, se as câmaras de televisão forrem barradas, cada cidadão tem a sua câmara no bolso agregada ao telemóvel e pode, a qualquer momento, fazer despertar o repórter que há em si.
Poderão também contrariar-me dizendo que nos velhos tempos do regime seria impossível assistirmos aos continuados desabafos públicos de atletas do FC Porto desagradados com as respectivas situações. Mas nesses admiráveis tempos não havia Facebook nem as demais redes sociais que vieram dispensar a bafienta utilidade dos intermediários oficiais e oficiosos.
Desenganem-se, portanto, os que acreditam na decadência do regime só porque viram um polícia e um jornalista a ser praxados. O regime está igualzinho ao que sempre foi desde o primeiro dia. E com os mesmíssimos tiques e com a mesma retórica. O mundo é que mudou.
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Jardel foi a figura do jogo do Benfica com o Vitória de Guimarães. 
É verdade que houve Markovic ao nível de um predestinado na primeira parte, é verdade que houve Oblak imbatível o jogo todo e chamado a serviço porque o Vitória não levou o autocarro para o relvado, é também verdade de que houve Luisão a cumprir o seu compromisso número 400 pelo Benfica com uma exibição categórica.
É verdade tudo isto mas Jardel, honra lhe seja feita, foi o homem do jogo porque uma figuraça daquelas, de cabeça entrapada até ao intervalo e, depois, por toda a segunda parte, usando como protecção um notável elmo de borracha e adesivos, inspirado no figurino do primeiro rei de Portugal, tem de ser forçosamente a figura da noite.
O adereço medieval transfigurou-o. Entrou no personagem régio e chegou para tudo e para todos. Uma limpeza. Fez esquecer Garay, é verdade.
No entanto, seria bom não vender Garay até ao final do mês para a Rússia. Isto, claro, se o Benfica quiser mesmo lutar pelos títulos a que concorre. Porque com Luisão, Garay, Jardel e Steven Vitória, o eixo da defesa parece dar garantias de coesão. 
E coesão foi o que mais se viu mais na noite de segunda-feira no Estádio da Luz. Sem ter feito uma exibição por aí-além, o Benfica ganhou muito bem os três pontos que estavam em causa.
É essa a nossa causa. É que não vejo outra.


texto de Leonor Pinhão

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