"Tudo a favor do videoárbitro, como é evidente; mas estaremos nós culturalmente preparados para o aceitar?!
Devem todos os que andam no futebol, e também os adeptos, naturalmente, entender que o videoáritro vai ser um instrumento para ajudar os árbitros a cometer menos erros. E vão os árbitros ser ajudados pelo videoárbitro e, por isso, conseguir cometer menos erros. Isso parece claro e facilmente compreensível.
O que não podem é todos os que andam no futebol, e também os adeptos, naturalmente, fazer do videoárbitro um instrumento de mais polémica, mais controvérsia, mais desconfiança, mais acusações, mais insinuações, mais suspeições. É preciso compreender que o essencial do videoárbitro não é eliminar do jogo o erro do árbitro; é, repito e sublinho, ajudá-lo a cometer menos erros. O que é bem diferente.
Não sou, nem nunca fui, contra o videoárbitro, entenda-se; mas tenho dúvidas que estejamos culturalmente preparados, no futebol português, muito em particular, para aceitar que vamos deixar de conviver com o futebol de sempre para passarmos a conviver com um novo futebol, aceitando um videoárbitro como penso que ele deve ser aceite.
Custa-me ouvir, por exemplo, falar do videoárbitro como se ele fosse pura e simplesmente eliminar todos os erros do jogo; é atirar areia para os olhos dos adeptos. É demagogia, é irresponsabilidade.
Cabe sobretudo aos dirigentes dos clubes, e das restantes entidades que regulam o futebol, e até aos treinadores, passar a mensagem correcta: o videoárbitro servirá para tentar ajudar os árbitros a julgarem e a decidirem melhor, dando naturalmente com essa melhoria, mais justiça ao jogo, mais verdade, porventura, a alguns resultados, mas não vai o videoárbitro ser o salvador de todas as pátrias do futebol.
Somos latinos, temos o sangue quente, como todos os latinos, e temos culturalmente maior tendência para gostar muito mais do nosso clube do que de futebol. E como gostamos mais do nosso clube do que de futebol distorcemos mais facilmente o que vê a cor dos nossos olhos, consoante sejamos mais encarnados, mais verdes ou mais azuis.
Pior do que isso: boa parte dos mais destacado do nosso futebol facilmente encontra na arbitragem o bode expiatório ideal para eventuais erros na gestão desportiva do clube que defendem. Todos sabemos que os árbitros não são todos muito bons, tal como o não são todos os treinadores ou todos os jogadores. Achei piada, a propósito, ao que disse recentemente Luís Figo sobre a reflexão que fez quanto ao papel de treinador, que o levou aliás a seguir, como se sabe, outro caminho: «Há treinadores muito bons que nunca chegam a ter sucesso, e há treinadores vulgares e até maus que conseguem ganhar muito coisa». Elucidativo.
Volto à questão do videoárbitro e à reflexão segundo a qual sou levado a concluir que a medida agora anunciada para a próxima época não vai acabar com o insuportável clima de escárnio e mal dizer que tem tomado conta do palco onde flutuam apenas Benfica, Sporting e FC Porto.
Vale a pena pensar, então, no seguinte: se hoje é muitas vezes tão contestada a nomeação de determinado árbitro para determinado jogo, o que podemos supor que vai acontecer na próxima época? Vai contestar-se a nomeação do árbitro... e a nomeação do videoárbitro, que vai ser um papel desempenhado também por um árbitro.
Em vez de uma... podemos passar a ter duas contestações por jogo. Muito possível e lamentável se assim acontecer.
Mais: nunca será demais explicar a toda a gente como vai funcionar o videoárbitro para que ninguém se deixe enganar por eventuais ilusionistas da «verdade desportiva».
Tome nota, caro leitor, sobre alguns aspectos da nova medida:
- só o árbitro pode recorrer ao videoárbitro, podendo, é verdade, o videoárbitro dar indicações ao árbitro, sugerindo-lhe uma decisão ou aconselhando-o a ir ele próprio ver as imagens no monitor de TV que deverá passar o próprio árbitro a dispor junto ao 4.º árbitro; mas só o árbitro continuará a ser soberano na decisão;
- o videoárbitro só terá intervenção em quatro acções do jogo: foras-de-jogo em lances que resultem em golo; disciplinar no caso de cartões vermelhos por falta grave que o árbitro, em campo, não identifique; trocas de identidade - o árbitro mostrar cartão ao X e dvia tê-lo mostrado ao Y -, e por fim, os controversos e tantas vezes subjectivos lances de penalty.
Quanto à bola que entra ou não na baliza, já não será necessária intervenção humana porque só a tecnologia se encarregará de dizer ao árbitro se foi ou não golo.
Peguemos apenas nos controversos e tantas vezes subjectivos lances de grande penalidade para esclarecer o seguinte: se o árbitro não sentir, porventura, dúvida em determinado lance não recorre ao videoárbitro; o mesmo acontecerá se o vídeoárbitro também não tiver dúvida - não dará igualmente qualquer indicação ao árbitro. Acontece que em casa, qualquer adepto vai poder continuar a considerar que o lance era para penalty. E quem diz o adepto, diz comentador; e quem diz comentador, diz dirigente!
Agora pense o leitor numa outra situação possível: o árbitro recorre ao videoárbitro, o videoárbitro tem dúvida, o árbitro vai ver pelos seus próprios olhos ao tal monitor e... mantém que o lance não é para penalty ou mantém que é; em casa, o adepto, o comentador ou o dirigente continuam a considerar que é ou não é, mas ao contrário da decisão do árbitro. O que vai o portuguesinho da Silva fazer? Criticar ainda mais o árbitro, acusando-o de não querer ver mesmo tendo à frente dos olhos... a as imagens da televisão! Polémica a dobrar, insinuações a aumentar, suspeições a triplicar.
E já nem falo das imagens poderem não esclarecer claramente o árbitro (que não tem de julgar como o adepto, que regra geral vê apenas o que lhe interessa...) ou dos possíveis casos, legítimos, de o árbitro ficar com uma opinião diferente do videoárbitro.
Em resumo, tudo a favor do videoárbitro, como é evidente; mas é necessário que nos preparemos culturalmente para aceitar que mesmo com videoárbitro vão continuar a existir erros humanos. E diferente interpretações. E subjectivas decisões.
Nesta paróquia onde tantos ralham e muito poucos têm realmente razão, não vai ser fácil explicar ao estimado adepto que as nomeações dos árbitros e dos videoárbitros serão sempre feitas com a boa intenção de contribuir para um bom futebol; que os árbitros e os videoárbitros continuam a ser os árbitros que vemos todas as semanas e não robots infalíveis; e que não valerá a pena exigirmos que tudo seja perfeito porque isso mesmo distorce o espírito de um jogo no qual também os jogadores iludem/enganam os árbitros, e têm por vezes treinadores que os estimulam a isso e dirigentes que os condenam por não o fazerem.
O espírito do jogo move-se também pelo erro (de todos), pela discussão saudável à segunda-feira, pela rivalidade bem entendida; o futebol é um jogo de paixões, de emoções, de luta, de contacto físico, de esperteza e inteligência na forma como se procura superar o adversário no ar ou junto à relva. Não é um jogo de computador.
Por tudo isso, devemos, no fundo, reflectir no seguinte: se vamos ter videoárbitro nos jogos para termos mais polémica, é melhor assumirmos a nossa incapacidade de tornar esta indústria de espectáculo mais competitiva, mais equilibrada e mais rentável.
Tudo a favor do videoárbitro, como é evidente, enquanto instrumento de auxílio aos árbitros e não enquanto instrumento para satisfazer os mais demagogos dirigentes ou os mais incompetentes gestores. Acredito, porém, que antes da medida anunciada do videoárbitro (numa clara tentativa de sossegar o futebol...) muitas outras coisas precisam urgentemente de ser alteradas no futebol português.
A começar por afastar do futebol todos aqueles que o caluniam ou o fazem mergulhar constantemente (e muito ruidosamente) num mar de suspeições, insinuações ou acusações não provadas.
Como não lamentar o que ouvimos esta semana de Fernando Gomes, administrador da SAD do FC Porto (com responsabilidades óbvias) ao insinuar a existência de «mais alguma coisa» e não apenas erro humano nas alegadas más decisões que alguns árbitros possam ter tido (e tiveram!) em prejuízo dos portistas?! Se existe mais alguma coisa, é preciso prová-lo. Se fica provado, o árbitro deve ser irradiado. E se não fica? Irradie-se o dirigente. Haja coragem!"
João Bonzinho, in a bola
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